29 de outubro de 2008

O livro que (nunca) escrevi

Escrevo. Desalmadamente. As minhas mãos têm uma velocidade que até a mim próprio me surpreendem.
Escrevo numa máquina pequena de escrever, daquelas à antiga. Tudo seguido. Aliás falo, dito para mim, para que as minhas mãos me obedeçam e elas cumprem, sem erros, sem emendas, sem necesidade de reler o que já está enfileirado em frases.
Nunca preciso de trocar de folha, é uma actividade contínua, sem qualquer paragem, hesitação, sou ágil a pensar e a executar.
Termino.
Guardo a folha junto a uma pilha que já tenho despachada, dentro de uma capa de livro preta, titulo a dourado. (Curiosamente não consigo recordar-me do nome deste livro...)
Saio para a rua.
Vou de chapéu, beata na boca, passo gingão.
Passo frente à montra de uma livraria e estaco.
Colo o rosto ao vidro, impressiono-me, vocifero, zango-me. Bato no vidro com toda a força até o estilhaçar e aparecer alguém a ameaçar-me.
Clamo que os livros que estão na montra são meus, de minha autoria.
As pessoas que entretanto se juntaram riem, o som das suas gargalhadas penetra-me nos ouvidos e faz-me mal. Sinto-me tonto, acossado e roubado.
Atiram-me pedras que arrancam do passeio. Eu fujo mas num acto de coragem volto atrás e agarro um dos livros da montra partida.
Abro-o. Sinto-me salvo.
O livro está em branco.
Desperto triste, triste, sem uma explicação de peso. Quase me apetece chorar como um rapazinho a quem roubaram a bicicleta.
Durante todo o dia dou voltas e voltas à cabeça para descobrir qual o título do livro que (não) escrevi.

1 comentário:

Alexandra disse...

Talvez não seja o título que interessa, mas sim o símbolo (livro) em si. E esse símbolo pode ter diversos significados, desde conhecimento, sabedoria... até a própria vida de cada um de nós!

O título? Poderia ser "A minha vida dava um livro" ?