22 de dezembro de 2008

Convalescença

Bom. Regresso, ainda que por pouco tempo que estou já de partida, após uma gripe que mais pareceu o Convento de Mafra.
Mas prometo que conto as febres, os delirios, os sonhos e os pesadelos que se deitaram ao meu lado a fazer-me companhia num momento tão solitário como é o ser vitima da influenza.
Desejo aos que têm vindo aqui, pacientemente, umas Boas Festas.
Mas... Olhem que eu volto!

15 de dezembro de 2008

Os morangos são vermelhos

Acordei com a moleza saborosa do conforto de uma boa cama, macia, a almofada enorme à altura ajustada do pescoço, uma cama de lençóis brancos, muito leves mas muito aconchegantes.
Espreguicei-me e fiquei a pensar como era boa a minha vida. Reparei que não havía tecto, só um dossel monumental a ondular lento. Sorri, achei bonito.
Chegou uma mulher, alta e fina como uma estatueta, a tez muito branca, cabelo longo, trepou na cama e de joelhos chegou-se a mim. Beijou-me, mal tocando os meus lábios
Depois deu-me morangos muito vermelhos, grandes, muito maduros à boca.
Enquanto os comía pensava como era bela aquela vista, tudo muito branco e o vermelho tão vivo dos morangos na minha boca.
Acordei.
Tinha os braços gelados, traçados sob a cabeça. Tapei-me. Fiquei a recordar aquele sonho de uma simplicidade tão grande que me comovi.

14 de dezembro de 2008

Terror nocturno

O terror nocturno (pavor nocturnus) é um distúrbio do sono caracterizado por gritos durante o sono acompanhado do semblante de terror como se a pessoa estivesse a ver algo terrífico durante o sono.

Quando se desperta alguém neste episódio a pessoa geralmente não se lembra de nada ou tem apenas uma vaga sensação de uma cena aterrorizante.

Não se tratam de sonhos maus, pesadelos.
O terror nocturno ocorre principalmente na infância diminuindo a partir do início da adolescência.



in Wikipedia

13 de dezembro de 2008

Sinais (?)

Entrei no duche. Água boa, quente, uma maravilha. Rolos e rolos de fumo pela casa de banho, tudo embaciado, uma sensação agradável, deixei-me ficar debaixo daquele gotejar contínuo, olhos fechados.
Passei as mãos na cara, na cabeça e ouvi um ruído de qualquer coisa caír. Fechei a água, saí, procurei em volta a causa do barulho. Nada, não vi nada.
Esfreguei-me vigorosamente, de novo o ruído mas desta vez com som diferente. Fiquei imobilizado e de ouvido atento. Nada.
Senti uma coisa nos pés... olhei. Surpreendido, vi que eram cabelos, rolos de cabelos escuro. Não percebía de onde aquilo viera, como tinha aparecido ali aos meus pés.
Comecei a ficar com frio, embrulhei-me na toalha mas para grande horror meu, a toalha estava cheia do mesmo cabelo que agora tombava por todo o chão da casa de banho. Levei as mãos à cabeça, sería meu? Estaría careca? Não, sentía o meu cabelo agarrado, mas pegado às mãos tinha trazido uma mecha farta.
Entrei em pânico, limpei o espelho retirando aquela película orvalhada que não deixava ver-me... tinha a cabeça cheia de peladas, faltava-me um olho, gritei, gritei muito!
Tapei a cara com a toalha, olhei o fundo da banheira, lá estava, preso no ralo, o meu olho, agarrei-o e a tremer de frio e de medo, lá arranjei coragem para me encarar.
Mas quando tirei a toalha a ponta do nariz veio atrás... depois os dentes caíram-me, soltos, à vez...
Era um desespero!
Tentar enfiar o olho na órbita, acamar os bocados de cabelo na cabeça e os dentes, eu punha e eles soltavam-se de novo... Mas não havía sangue nenhum, nada... Pensei que era um sonho, apenas um sonho, bastava eu querer e aquilo paráva... Fechei os olhos e voltei a mirar o espelho, tudo no sitio, normal, a minha cara completa.
Despertei.
Sustive a respiração, não me mexi, apenas fixei o tecto.
Veio-me à memória que a minha Avó me costumava dizer que quem sonha com dentes é sinal de morte de alguém próximo.

12 de dezembro de 2008

______________Zzzz

Zzzzzzzzzzzzzzzz...
Sabem que mais?
Dormi que nem uma pedra!
Um justo, será mais acertado, estava mesmo a precisar.
Isto sim, não me lembrar rigorosamente de nada é um sonho!

11 de dezembro de 2008

O antes e o agora

A minha Mãe costumava tapar-me, ajeitar a dobra do lençol, dava-me um beijo na bochecha e antes de apagar a luz o aviso do "é para dormir! dorme bem filho". E eu dormía, era num instante. Depois, a meio da noite ela a entrar de camisa de dormir ou de outras vezes de roupão azul-claro até aos pés (não sei porque me lembrei disto agora, até aquela cor azul bébé), a agarrar-me, a encostar-me ao peito dela e a dizer "já passou". Não passava logo, mas o medo ía-se...
Embora sentisse uma angústia que naquele tempo não sabía que se chamava angústia, parecía que nada de mal me podería acontecer com a minha Mãe ali ao pé de mim. Já tentei recorrer a essa imagem nos meus pesadelos de adulto, buscar algum alivio, uma bóia de salvação, mas nada me faz sossegar e quanto mais força faço para me lembrar dessas noites de infãncia em que ela me acudía mais só e acossado me sinto.
Tenho vezes em que desejo fugir, não sei para onde, nem para quem. Mas para a minha Mãe é que já não é possível.

10 de dezembro de 2008

Foto-memória

Com mais tempo desatei furiosamente a procurar tudo o que era fotografia da minha infância, da escola, do miúdo de calções e joelhos mal-tratados que tinha sido meu colega.
Mas por mais que fuçasse não encontrei rigorosamente mais nada, nenhuma pista, zero.
No entanto, a busca levou-me a outros patamares da minha vida, coisas que não me recordava mais, rostos a desfilarem numa galeria. Alguns mortos, outros esquecidos, uns quantos que não soube reconhecer.
As horas passaram e eu não me apercebi.
Nada de sono.
Só flashes que acenderam a luz da minha sala, tantas vezes, mas tantas vezes que bem podíam ter-me fundido na escuridão completa.
Espero que esta noite em branco (ou em negro?) me traga sossego aos sonhos, pesadelos, explicações para o que os profissionais me cobram na base das hipóteses.

9 de dezembro de 2008

O colega de escola

Amarrado de tronco e braços era-me impossível escapar. O pequenino combóio prosseguia a uma velocidade incrível, sentía um ar frio na cara, tudo negro, de quando em vez qualquer coisa ao de leve roçava na minha cabeça, no meu pescoço, reconheci o combóio-fantasma da minha infância da Feira Popular, a minha coragem perante a malta ao querer meter-me com esqueletos e outros sustos que saltavam de cavernas à medida que se passava em curvas sinuosas e que me davam um enjoo tremendo.
Agora aqui estava eu de novo, já homem, nem medo, nem náusea.
Só não entendía porque estava amarrado.
Os olhos foram-se habituando à escuridão. À minha frente um miúdo cinzento voltou-se para mim e riu-se, vi-lhe os dentes brancos, alguns em falta, só ría, não proferiu uma palavra que fosse.
Não sei como mas o meu olhar conseguiu chegar ao lugar dele e entrei em pânico quando lhe vi os tais calções, os joelhos feridos.
Debati-me para me libertar do que me prendía mas não consegui libertar-me, apenas tombei do combóio e fiquei para tráz, manietado e sózinho numa linha escura.
A pressão que tinha no peito quando acordei parecía que não me dava espaço para respirar.
Lembrei-me da cara do miúdo. Tentei recordar de onde o conhecía, havía qualquer coisa familiar naquele riso marcado e sem som.
Levantei-me, fui ao álbum de fotografias, procurei a de grupo da escola. Lá estava ele.
Agora eu sabía que um dos miúdos do meu sonho da rua era um antigo colega.
Mas isso não me deixou mais descansado e tão pouco pegar outra vez no sono.

8 de dezembro de 2008

Palhaço

Não sei como começou.
Só sei que eu já estava naquela figura endiabrada de puxar as bochechas, deitar a lingua de fora, doutras enrolava as mãos e fazía uns óculos redondos formado pelos dedos e colocava-os à frente dos olhos, imitando com a boca o barulho de uma avioneta, ainda numa outra deixava pender uma fio de saliva que escorría pelo queixo.
Toda a gente ría.
E eu fazía ainda pior: quando o chefe voltava costas, atiçava-lhe uma par de cornos bem espetados pelos dedos indicador e mindinho ou então, levantava-me da minha mesa e perseguía-o imitando o seu caminhar. Quando ele se apercebía que eu estava na sua cola, eu disfarçava (mal) que apanhava qualquer coisa do chão ou olhava para o tecto, e tão insistentemente que o homem acabava também por dirigir para aí o seu olhar.
Alguns colegas batíam palmas à minha momice e eu agradecía com um flectir gentil de joelhos, puxando o forro das algibeiras para fora, rematando que o elefantezinho ficava muito grato mas não tocava o badalo do sino...
Acordei na minha própria gargalhada.
E ainda estive a rir baixinho algum tempo, não fosse o silêncio do quarto despertar e ir contar a alguém os sonhos bizarros que tenho.

7 de dezembro de 2008

Traumas

O trauma psicológico é um tipo de dano emocional que ocorre como resultado de algum acontecimento.

Quando o trauma conduz ao stress, pode envolver mudanças físicas no cérebro, podendo afectar o comportamento da pessoa.
Um evento traumático envolve uma experiência ou série de experiências repetidas que afectam a maneira do indivíduo lidar com idéias ou emoções envolvidas com aquela experiência, podendo às vezes durar semanas ou anos.

O trauma pode ser causado por vários tipos de eventos, mas há alguns aspectos em comum. Geralmente implica o sentimento de completo desamparo diante de uma ameaça real ou subjectiva à própria vida, ou à vida de pessoas amadas, ou à integridade do corpo. Um trauma pode, frequentemente, violar as idéias do indivíduo a respeito do mundo, colocando-o num estado de extrema confusão e insegurança. O trauma também pode acontecer em decorrência da traição de outrém ou instituição de maneira imprevista.
O trauma psicológico pode vir acompanhado de trauma físico ou existir de maneira independente.

Alguns tipos de causas de traumas psicológicos são: abuso sexual, violência ou ameaças, especialmente se ocorrem na infância. Eventos catastróficos como terremotos e erupções vulcânicas, guerra ou outras formas de violência em massa também podem causar traumas psicológicos, assim como exposição à miséria durante longo tempo ou mesmo abuso verbal.

Entretanto, pessoas diferentes reagem de maneiras diferentes em eventos similares. Uma pessoa pode sentir como traumático um evento que outra pessoa pode não sentir, e nem todas as pessoas que passam por experiências traumáticas podem tornar-se psicologicamente traumatizadas.



in Wikipedia

6 de dezembro de 2008

Já chega!

A rua.
A que me acompanha desde a infância nos pesadelos que não conseguem ter outra cor senão negros, brancos, cinzento muito escuro como o dos bicos dos lápis.
Desço-a, como sempre. Empurrado pelo vento, como sempre, a gravata a esvoaçar, as mãos nos bolsos, as bandas do casaco a abanarem, vejo a biqueira dos meus sapatos pretos a avançarem num passo certo, ligeiro.
Lá estão os miúdos junto ao passeio, acocorados, vestidos de calções. Não sei porque tanta confusão me faz eles estarem de calções...
Não há mais ninguém, nem carros, nem vestigios de vida para além de mim e dos garotos.
Chego junto a eles, pergunto-lhes se sabem que rua é esta, respondem todos ao mesmo tempo, não consigo perceber o que dizem, insisto na pergunta, uma gritaria que me ensurdece, faz mal, é um zunido que me entra e me aleija, mas não é bem dor, é mais uma tristeza, uma sensação de ter perdido qualquer coisa.
Pergunto-lhes porque estão de calções, não devíam estar de calções, está vento. E reparo que todos têm os joelhos esfolados, uma carne viva que baba um sangue cinzento, tudo é cinzento, eles gritam e eu assusto-me, corro, só vejo a biqueira preta dos meus sapatos, atrás eles, os calções, os joelhos, não há mais nada nesta rua, é só rua...
Berro.
Acordo.
Estou encharcado.
Não aguento mais este pesadelo que me persegue desde criança!
Não consigo fugir desta rua, deste pesadelo!

5 de dezembro de 2008

O sofá

Quando me deitei não tinha sono, a hora habitual de me recolher já havía passado, pois fui-me deixando estar numa moleza sem limites, agarrado ao comando da televisão.
Disse a mim próprio mais de 10 vezes que a seguir "a isto" levanto-me e vou para a cama. Mas a seguir "a isto" veio sempre "mais isto" e depois "outra coisa", e o tempo foi-se arrastando e eu com ele.
Está-se bem no meu sofá, já tem aquele encaixe do corpo, as almofadas a ampararem, a manta de viagem macia e quente...
Empurrado pelo bom senso lá me recolhi.
Mas o sono não se recolheu comigo e tudo o que tinha visto voltou em ondas, vagas, tsunamis, um fervilhar na cabeça que não me deixava quieto, os sons, as cores, todas as imagens a passarem-se como uma reposição mesmo à frente dos meus olhos. Eu bem os fechava mas quando dava conta já estavam bem abertos!
Levantei-me de um pulo.
Voltei à sala, ao sofá, à televisão, comando em punho.
Mas a insónia chegou com uma força tal que até das televendas eu não perdi pitada.
Lá fora chovía e relampejava. Não ouvi trovão algum.
Mas quando se anunciou estava em cima do prédio e a luz foi-se.
Não sei quanto tempo permaneci acordado. De manhã estava moído, um gosto estranho na boca e a cabeça completamente vazia.
O sofá pareceu-me pequeno, demasiado apertado para um homem do meu tamanho lá caber.

4 de dezembro de 2008

O tamanho não é tudo

Despertei devagar. Deitado de barriga para baixo, o braço direito esticado adiante, a mão cravada numa terra muito castanha e tudo à volta muito verde, tão verde que fazía doer os olhos.
A cara rente ao solo deixava-me aperceber com uma visão de lupa pequenos habitantes que se movíam entre a relva, palhinhas, folhas encarquilhadas. Seguíam na sua vida, totalmente alheios à minha presença.
Eram figura de gente mas com carapaças de insectos, o colorido variado desde um vermelho intenso até ao negro azulado. Havíam mulheres lindas e homens gordos, alguns de barba aparada e o que estranhei mesmo, foi a elegância que aquelas asas, patas e penugens lhes confería, apesar do rosto ser humano.
Não reconheci ninguém.
E achei que desta forma podería atrever-me a uma partida: soprei de fininho e longamente.
Mas nada se passou, prosseguiram no seu caminho entre o verde luminoso.
Tentei empurrar uma mulher com asas de joaninha, fazendo uma leve pressão com o indicador, mas ela muito resistente, nada sentiu.
Era como se não tivesse força, presença.
Lembrei-me de repente que talvez eu não existisse... de palma bem aberta assentei com um ruído abafado todo o meu poder, o meu tamanho gigantesco em contraste com tais insignificantes criaturas.
Devo ter sorrido... achei-me superior.
Mas quando levantei a mão estava tudo exactamente como se nada se tivesse passado com o meu gesto.
Aborrecido, tentei erguer-me e ir embora.
Mas a mão cravada na terra prendía-me de tal forma que não consegui outra posição senão ficar de joelhos. Puxei, ajudei com a mão livre, senti os tendões do pulso a esticarem-se como elásticos, uma dor começou a apossar-se de mim, todo o verde se começou a engelhar como um tapete e concentrando-se na área onde eu me encontrava.
Gritei. Depois mais alto.
Mas de nada me serviu pois acabei engolido e o som mais parecía um restolhar de folhas velhas.
Acordei com o coração descompassado.
As duas mãos enroladas por baixo da almofada não obedeceram de tão dormentes que estavam.

3 de dezembro de 2008

As ajudantes

Confessei a um amigo os meus pesadelos com a figura do pai natal. Ele riu-se. Tentei que ele entendesse o quanto aquilo me angustía e me deixa mal mesmo depois de estar desperto. Aconselhou-me: que não negasse o simpático velhote, isso era tudo traumas da infância; e se isso não me bastasse, que pensasse nas belas jovens que costumam ajudá-lo, com aqueles fatinhos curtos, perna à vista, carapuço de pompom...
Calei-me, ninguém entende a aflição por que passo.
É tudo tão real, sensorial.
Quando me deitei, recordei-me da nossa conversa. Temi que aquilo se tornasse sonho e quase desejei ter uma das minhas insónias para não ter de passar outra vez pelo mesmo terror.
Sentei-me na minha secretária, papéis, telefonemas, o expediente normal. Chegaram duas meninas vestidas de pai natal. Fizeram-me cócegas com os arminhos dos fatos, risinhos baixos.
Eu só olhava ao redor, toda a gente a trabalhar sem me prestar atenção.
Abriram os fatos e uma delas sentou-se de pernas afastadas na minha mesa. Nua. A outra atiçava-me, perguntava se eu não quería brincar, se não gostava de brincar. Eu, cheio de vontade mas renitente, envergonhado perante os outros que estavam na sala, desconfiado também.
Trocaram de posições. Insistíam, levavam as minhas mãos ao corpo que se oferecía, um sexo exibido sem pejo, e a outra sempre a incitar-me.
Atirei-me de boca, as duas a gemerem em uníssono e eu cada vez a sentir um gozo maior.
O meu amigo aproximou-se e exigiu a sua parte na festa, que ele é que tinha falado delas. Copulou uma das meninas, eu a ver, e ele no acto sempre a dizer o mesmo, então isto faz algum medo? Isto faz algum medo? isto faz algum medo?
Não hesitei mais, entrei nela, demorei-me, era uma coisa sem fim, de prazer longo, fundo, vagaroso. Muito saboroso. Apertado, quente, quase sentía uma náusea de tão bom.
Quando dei conta, estávamos apenas os dois, os outros havíam desaparecido, a secretária, o escritório tinham-se evaporado, a minha cama recebía-nos confortavelmente, eu confortavelmente no meio das coxas dela, sempre vestida com aquele fatinho vermelho cheio de arminhos brancos.
Acordei tão tranquilo que me voltei para o outro lado e rápido voltei a adormecer.

2 de dezembro de 2008

Fixação

Empurraram-me para uma fila de miúdos, todos aos guinchos, eu enorme, de fato e gravata. Bem me revoltei e defendi que já não tinha idade para aquilo e tão pouco acreditava no pai natal, mas apertado entre uns e outros cheguei à cadeira onde o homenzinho das barbas brancas estava sentado.
Quería que eu me sentasse ao seu colo. Achei aquilo ridiculo! Antes que eu pudesse escapar-me, agarrou em mim com uma leveza que só visto e sentou-me nos joelhos. Depois ameaçou-me. Que se eu continuasse com a mesma postura ainda me acontecía qualquer coisa...
Eu olhava os miúdos na fila e aterrorizado, tentava que a minha expressão os alertasse para o perigo que corríam.
Nada: a euforia mantinha-se.
O pai natal começou a apertar-me cada vez mais e eu só vía vermelho, tudo vermelho, uma cor que cobría tudo de igual modo como um manto.
Gritei por socorro.
Ele agarrou-me pela gravata e enfiou-me na saca dos presentes.
Acordei sem ar, engasgado, uma sensação de mãos à volta do meu pescoço. Chamei-lhe tudo o que me lembrei e desejei que fosse para o inferno.
A chuva aumentou de intensidade e as pingueiras no varandim de metal, sincopadas, não me deixaram voltar a adormecer.

1 de dezembro de 2008

Pai Natal

Acreditei no Pai Natal até muito tarde. Acho que quería acreditar. Quando finalmente dei ouvidos aos amigos e os meus pais me confirmaram que era tudo uma invenção, o Natal acabou para mim. Deixei de sentir aquela ansiedade de ir para a cama e esperar pela madrugada do dia 25 para ver com que fora presenteado. O fascinio da surpresa era tudo e sem aquela mentira, passou tudo a ser mentira.
Desde a música na rádio, às iluminações na rua, aos pais natais de plásticos pendurados nas varandas como enforcados ou assaltantes, à correría para os centros comerciais tudo me alerta para o louco Dezembro. Mas a verdade é que me passa à margem, não ligo, gosto dos feriados e ponto.
Deitei-me tranquilo, saber o despertador mudo agradou-me, mandriar na cama no dia seguinte ainda me satisfez mais.
Dei com ele na minha sala a mexer em tudo. Chamei-lhe a atenção e pedi-lhe que saísse. Não me ligou, agarrei-o por um braço e puxei-o para fora, repetindo a ordem de rua. Ameaçou-me com a sua figura barriguda, cresceu desmesuradamente ao ponto de vergar o pescoço para não bater no tecto. Não me intimidei, chamei-lhe fraude e que a mim não me enganava. Atirou-me com a saca dos brinquedos, mas aquilo era macio e não me fez mossa nenhuma.
Saltei para cima da mesa de jantar e de dedo esticado, irónico e valente, disse-lhe que fosse dar uma volta ao bilhar grande.
O Pai Natal enfureceu-se. Dobrou-se sobre mim. Agarrei-lhe a barba branca e encaracolada e fiquei em pânico quando uma mecha de cabelos me veio colada às mãos. Fiquei sem saber o que fazer.
Ele nada dizía, só estava inclinado sobre mim, como um boneco.
Achei que a vingança me apanharía de surpresa e num golpe de génio, atirei-me à cabeleira, às barbas, onde conseguisse segurar.
Pendurado e a usar de toda a minha força não percebía porque razão ele não reagía. Um nariz vermelho de bola, como o dos palhaços cresceu-lhe e eu aterrorizado, desatei a urrar. Arranquei-lhe a cabeça, o corpo de pé, enorme e bojudo e aquela cabeça a rolar pela minha sala, o nariz vermelho a aparecer de quando em vez.
Acordei. Levantei-me e fui à sala. Tudo escuro, silencioso. Acendi a luz, tudo normal.
Sentei-me no sofá e aí fiquei até tremer de frio.

30 de novembro de 2008

Pelas brasas

Como grande parte da noite de véspera fiquei de olhos abertos o dia seguinte foi penoso.
À tarde aconcheguei-me no sofá, mas determinado a não adormecer, já sabendo das consequências para a noite próxima.
Mas o corpo não quer saber destas coisas. E acompanhado de uma boa música, baixinho, fui embalando, a chuva lá fora, puxei a manta de viagem para mim, depois uma almofada.
Sentía-me mesmo bem.
Estava confortável, sorridente, no meio de amigos, conversa sem rumo.
Acordei com o coração aos pulos com o ruído da trovoada.
A chuva aumentou, agarrei no comando e desliguei a música, puxei os joelhos ao peito e aconcheguei-me no macio do sofá.
Desatei a correr, mas tanto que eu corría, ninguém me agarrava, atingi uma velocidade imensa, todos os meus amigos aos berros e gargalhadas atrás de mim, um bando de fato e gravata a comportarem-se como uns garotos! Até isso me divertía!
Novo estrondo e despertei outra vez, o coração acelerado, a cara marcada dos enfeites da almofada, os pés frios.
Levantei-me contrariado e fiquei com mau feitio até ao final do dia.

29 de novembro de 2008

Labirinto

Passeio-me num jardim luxuriante, as árvores altissímas ondulam brandamente ao sabor de uma brisa morna que me envolve. Cheira bem. Os canteiros estão geometricamente floridos por escala de cores, desde um roxo profundo de amores-perfeitos até ao branco de copo de leite de umas rosas tão abertas como pratos.
Até o chão se cobre de uma relva como nunca vi tão verde.
Tudo é belo, arrumado e limpo.
Intencionalmente entro num labirinto feito de arbustos recortados de figuras humanas. São gigantescas e perfeitas.
Aventuro-me, não receio perder-me pelas várias saídas enganosas, sei o caminho para saír.
Ao roçar numa curva para outro corredor, sinto puxarem-me o braço. É uma mulher de vestido branco, comprido, cabelo até aos pés que vai arrastando pequenas folhas que tombaram dos arbustos. Ri-se. Uma gargalhada bonita a cortar o silêncio. Pergunto-lhe como se chama mas só se ri. Reparo então que tem os olhos vendados, tento tirar-lhe a venda mas ela não deixa e continua a rir-se.
Puxa-me por um braço e leva-me para dentro dos arbustos de figuras humanas. Arranho-me nos galhos, sinto a cara a arder das vergastadas dos ramos mais flexíveis que ela larga na passagem à minha frente. Peço-lhe que páre, que nos vamos perder, mas ela prossegue, cada vez mais distante de mim e sempre a rir.
Guio-me pelo rasto que o seu cabelo deixa mas tenho medo de o pisar e de a magoar.
De repente tudo desaparece: o intrincado caminho, os cabelos longos, a mulher, o seu riso.
Encontro-me num descampado ermo, sem vegetação alguma, apenas terreno pedregoso e terra muito escura. Caminho com cuidado, nuvens de pó levantam-se, parecem cinzas.
Encontro a venda da mulher.
Não sei porquê coloco-a. Não vejo nada. Grito. Grito ainda mais e tento arrancar o pano que me cega mas não sou capaz.
Acordo engasgado com a minha própria saliva, coberto de suor, a almofada e o sitio onde me deito húmidos de transpiração.
Levo o resto da noite a tentar decifrar o que sonhei. Sinto que este sonho se relaciona com alguma coisa que passei mas não me consigo lembrar.

28 de novembro de 2008

Do lado de lá

A rua está completamente deserta. Já passei por aqui muitas vezes, conheço-a, até as pedras da calçada me são familiares, sei onde há falta do desenho ou onde foi restaurado recentemente. Desço-a, impelido por um vento que me empurra as costas.
A rua é enorme, nem sequer consigo ver-lhe o fim, saber se há outras ruas que se entronquem, prédios que façam esquinas.
É tudo rua. Cinzenta, da cor do granito.
Aqui e ali, muito brancas as linhas das passadeiras de peões. Acho estranho, não há mais ninguém, para quê as passadeiras, tão pouco há carros. Só eu. Unicamente eu a descer esta rua infindável e ventosa.
Caminho sempre, não sei para onde vou. Quando olho para trás parece que não saí do mesmo sitio e quando volto a cabeça para medir a distância até ao outro extremo tudo se alonga gradualmente, se afasta dos meus passos.
Apresso-me, sinto que é urgente chegar ao fim.
Talvez se passar para o outro passeio o percurso se encurte.
Procuro as linhas brancas das passadeiras e faço-me à estrada. Mas mal piso essas listas, sinto-me abanar e sacudir como se fosse ser cuspido. Tenho algum receio, corro para o passeio, mas não consigo chegar lá, então volto para o caminho inverso.
A rua estica-se cada vez mais, cada vez mais longe da minha vista. Miro o outro lado e no outro passeio há gente, chamam-me, gritam-me que tenho de atravessar no sitio das passadeiras, sem isso não lhes consigo chegar...
Salto para a passadeira uma outra vez. A mesma coisa mas mais violenta.
Do outro lado as pessoas dizem-me adeus, gritam que não podem esperar mais por mim.
Acordo com o som de um cão que uiva lá fora.
Uma sensação de solidão e abandono aperta-me o pescoço. O cão não se cala.

27 de novembro de 2008

O despertador

Estive muito tempo sem conseguir adormecer.
Sentía-me cansado, demasiado cansado e quando assim estou parece que não há sono que me aquiete, mesmo estando cheio de vontade de dormir.
As preocupações da hora avançar e nada de fechar os olhos ainda me agravaram mais o sossego necessário para me tranquilizar e embalar.
Agarrei no despertador e confirmei a hora do acordar. Tudo certo. Ainda voltei a verificar mais uma vez, fiz mentalmente contas às horas que me faltavam para me levantar.
Acordei num repente, olhei o relógio, já tinha passado da hora de me apresentar ao serviço.
Corri para o guarda-fatos, nem tempo para fazer a barba ou tomar banho.
Em vez de ir de carro, resolvi ir a pé para não me meter em filas.
Desatei a bater com os calcanhares no rabo e tão rápido o fiz, que levantei do chão e cheguei rápido ao emprego.
Mas quando me sentei na minha secretária reparei que estava de chinelos de quarto, as calças não eram minhas pois estavam pelas canelas e toda a gente se queixava que eu cheirava mal.
A vergonha caíu sobre mim, quis desaparecer, não existir...
E o chefe sempre a chamar-me, a impôr a sua vontade, a obrigar-me a ir ao seu gabinete, passar pelo sector inteiro, toda a gente a ridicularizar-me naquela figura.
Dei um safanão, o despertador caíu-me das mãos e desatou a rodar no seu próprio som irritante.
Agarrei-o, calei-o e verifiquei que em dez minutos tinha adormecido de luz acesa, meio sentado à cabeceira da cama.
Apesar de estar tapado tinha os chinelos calçados...
Só me faltava esta! Será que dei em sonâmbulo?

26 de novembro de 2008

O rei dos bolos

A mesa, enorme, prolongava-se para além do que a minha vista conseguía alcançar.
As iguarias eram quase todas doces, bolos monumentais e altos como os de uma festa de casamento. Muitos arranjos de flores, alguns altos como árvores plantadas na toalha branca. Mas eu vislumbrava todos os que se lambuzavam à minha mesa e incitava-os a comer, a provar disto e daquilo, a enterrarem os dentes nos bolos cheios de cremes brancos e rosados, uma profusão de chocolates, cheiro de baunilha, morangos grandes como maçãs que parecíam ter sido envernizados tal era o brilho.
Eu no topo da mesa. Bastava-me desejar, imaginar qualquer tipo de pastelaria e ela logo aparecía, um odor adocicado que embebedava.
A servir os meus convidados, criados de peruca, uma farda comestível que eles próprios oferecíam como cartão de visita a quem ía aparecendo.
Tudo me parecía normal, razoável, eu dono e senhor de um castelo feito de açúcares como a história infantil. Mas sentía-me a salvo de bruxas e de todo e qualquer mal. Eu era rei.
Eu próprio coroado de nogat.
Todos me adoravam, lambíam-me as mãos doces, os anéis de pedras preciosas, os punhos de renda, a jaqueta.
Acordei. Fiquei muito sossegado.
Perguntei-me porque razão sonhara com doces, bolos, confeitaria, eu que nem sou apreciador de tais coisas...
A imagem de um rei lambido deu-me um enjoo e achei-me detestável em tal soberania.

25 de novembro de 2008

Porque sim e porque não

Tanto pensei porque ocorrem os sonhos e pesadelos que acabei por adormecer.
E se sonhei... não me recordo de nada.
Mas acordei com a cabeça vazia, alguma dificuldade em fazer a rotina da manhã. Dormente, a bem dizer.
Quase parece que não funciono sem um sonho ou até mesmo um pesadelo que me sacuda.

24 de novembro de 2008

Até hoje sem resposta

Dizem que nos lembramos do que sonhámos se tal acontecer muito perto do acordar.
Mas eu duvido...
Já me aconteceu sonhar pela noite fora com interregnos cheio de suores gelados e palpitações e voltando a adormecer pego no sonho ou pesadelo exactamente no ponto onde o deixei.
Não sou dado a esoterismos nem coisas de bruxaria, mas a verdade, é que tantas vezes estes sonhos me atormentam como avisos em grandes placas ou prenúncios de avistar alguém que há muito não vejo nem recordo.
Se do estado de vigilia passamos para uma plataforma do subconsciente, como se consegue separar o racional do improvável, o plausível do almejado?
Todos os sonhos que tenho frequentemente com mulheres que nunca vi, em que o acto sexual parece ser o único objectivo não fazem de mim um homem carente nem um obsecado pelo coito; assim como os pesadelos em que morro nas quedas não me tornam desconfiado de quem de mim se aproxima pelas costas.
Em que sitio estou então?
Num insconsciente? Num coma vigil? Ou numa dimensão inexplicável em que a resolução passa pela apreensão de bocados de realidade e os mistura com o desejo profundo?
Quem souber que mo diga.
Ou quem tiver opinião sobre o assunto que ma acrescente à outras que tenho de profissionais na matéria.
E que me deixaram ainda mais baralhado!

23 de novembro de 2008

Ajuda-me!

Estou sentado no parapeito de uma janela que fica à face com a verticalidade do prédio. Espreito, de dedos cravados como garras, vejo um revestimento de azulejos azul e branco, alguns amarelos, florões ou melhor, quadrados de flores de lis.
Não sei como vim aqui parar, sinto vertigens. De repente reconheço a janela, os azulejos de outros sonhos, digo para mim mesmo que isto é apenas um sonho e basta acordar para saír desta posição instável.
Tanto tenho medo como tenho uma atracção que me puxa para me debruçar e caír.
Questiono-me quanto ao que possa fazer, sinto medo, um medo que me paralisa.
Os cortinados de gaze branca ondulam e batem-me na cara, prendem-se na barba, sacudo a cabeça, sinto-me asfixiar, sinto que alguém invisivel me quer fazer mal.
Grito pela minha mãe, uma, duas vezes.
Ela responde-me ao longe, sem se aproximar da minha aflição.
Insisto para que me ajude, que me puxe para dentro de casa.
Num repente ela está ao meu lado, do lado de dentro. Se se encostar a mim atira-me lá para baixo.
Peço-lhe novamente e já num tom de piedade que me ajude, que me ajude... Mas ela afasta-se e diz-me que eu tenho de aprender sózinho e apenas por mim a resolver as coisas, de outra forma nunca aprenderei.
Grito por ela que desapareceu completamente.
O sobressalto da queda desperta-me.
Tenho saudades da minha mãe. Tenho uma tristeza imensa dentro de mim por ela me ter abandonado no meu sonho.
Amarguro-me.
Todo o dia uma dor sem explicação me abranda o bater do coração, tudo me deprime.

22 de novembro de 2008

Uma perfeita desconhecida

Entro no Metropolitano. A abarrotar. Viajo encostado às portas, espalmado, cheio de calor, sem ar para respirar, parece que toda esta multidão nada sente, os olhos parados.
Mais uma estação: sou violetamente socado na zona dos rins por mais uns quantos que se atiram para dentro da carruagem. Tão pouco tenho espaço para me virar e exigir um pouco de educação.
O metro guincha com a velocidade que atinge. As mulheres têm os cabelos a esvoaçar e os homens as gravatas de lado.
No meio de tanta gente sinto que alguém me olha fixamente. Mas sinto-o no pescoço como se fosse uma picada. Viro a cabeça e no relance avisto uma mulher. Sorri-me.
Abraça-me pelas costas, as mãos dela muito hábeis entram dentro dos meus bolsos. Acaricia-me. Fico aflito.
Sinto-lhe os mamilos nas costas num roçar lento que me põe louco, ainda mais porque não consigo voltar-me e encará-la.
As mãos dela percorrem-me as pernas, o interior, a face externa em ligeiras pressões como que a experimentar-me, a desafiar-me.
Sopra ao de leve no meu pescoço, nas minhas orelhas e eu naquela posição de estátua.
Sinto um chupão prolongado junto ao colarinho, aquilo arrepia-me, agarro-lhe uma das mãos mas ela guia a minha própria mão ao meu sexo e afaga-me por cima das calças. Sinto uma erecção cada vez mais pronunciada.
Abre-me o fecho devagar, leva uma eternidade, ferra-me os dentes no pescoço e prende um pouco de carne, magoa-me e excita-me.
Toda ela se roça por mim, pelas minhas costas, mete a mão por dentro das calças e aperta-me o sexo com uma segurança e força controlada. Masturba-me lentamente. Fecho os olhos, não quero saber onde estou ou se alguém possa adivinhar o que está a acontecer.
Pelo altifalante anunciam a chegada à próxima estação com ligação a uma outra qualquer.
Ela pára. Eu sinto-me todo a tremer, a latejar.
Toda a gente sai e fico sózinho na carruagem. Procuro um recanto onde possa terminar o que ela começou mas mal o descubro a carruagem enche-se de novo e ela regressa. Sorrio.
Acordo um pouco enjoado.
Fico acordado por bastante tempo a reviver o sonho.

21 de novembro de 2008

Bola de fogo

Levanto-me da cama e vou à janela.
Há uma claridade incendiada que me leva a suspeitar que o prédio arde, que corro perigo.
Abro as cortinas e a luz do dia bate-me em cheio na cara, no peito. Aquece-me. Fico de braços abertos a receber aquele calor.
Olho o sol já alto.
É precisamente quando o encaro que ele se torna uma bola laranja de fogo, giratória, cada vez maior e ganhando velocidade em direcção a mim. Assusto-me, mas não consigo tirar as mãos e os braços, fechar a janela e proteger-me, está tudo dormente, um formigueiro que me tira o comando dos movimentos, que me mantém naquela posição de cristo crucificado, sei que não conseguirei evitar o embate do sol contra mim.
Perante a evidência, resigno-me, espero que a dor seja curta e que acabe rápido comigo, que não sinta aquele lume a queimar-me.
Mas apenas uma faúlha se solta daquela bola de fogo que fica a pairar à minha frente, cega-me.
Essa partícula incendiada ataca-me o peito, o coração, queima lentamente até se sentir o cheiro de carne queimada, o buraco que abre para me levar o que tenho dentro.
Grito de dor, o meu tronco em chamas e fumegante arde lentamente e eu cego e preso nada posso fazer, sei que vou perecer com tamanha dor, quase começo a gostar...
Desperto com um estremeção.
O quarto está escuro. O meu coração acelerado, tento acalmar-me, pouso a mão no peito, está cá tudo, intacto.
Tapo a cabeça e respiro profundamente. Mas não de alivio.

20 de novembro de 2008

Vigília

Vigília (<latim vigilia = guarda ou vigia) é um estado ordinário de consciência, complementar ao estado de sono, ocorrente no ser humano e noutros animais superiores, em que há máxima ou plena manifestação da actividade perceptivo-sensorial e motora voluntária.


Ao dizer-se complementar, em conjugação com ordinário, quer significar tão somente, que na maioria dos indivíduos (com destaque aqui para os humanos), tais estados de consciência alternam-se, complementam-se ordinariamente.


O Estado de vigília é caracterizado por um padrão de ondas cerebrais típico, essencialmente diferente do padrão do estado de sono, bem como do verificado nos demais estados de consciência.





in Wikipedia

19 de novembro de 2008

Ela outra vez

Tive um dia de torrar! Cheguei a casa completamente roto, sem fome, só a pensar em cama e dormir, descansar, descansar e descansar.
Atirei-me para cima do sofá e num acto vicioso liguei a televisão: novelas, muito do mesmo em todos os canais, zapping, uma pepineira em todos.
Descalçei-me e fiquei por ali naquela moleza do nada.
O meu chefe chegou e desatou a pedir-me um monte de coisas, tudo ao mesmo tempo e tudo urgente. Perante a minha incredulidade de o ver na minha sala e no meu sofá ergui-me de um salto e impus a minha qualidade de proprietário da casa ordenando que se retirasse. Ele desatou a rir e num instante ficou sério.
Atirou-me um monte de papelada à cara, marcou um prazo e disse que era para ser feito tudo à mão. À mão?! Mas o quê? Eu não sabía o que era para fazer e ainda por cima à mão... aquela pergunta não me saía da boca e era ele a mandar e eu a perguntar, dois surdos que não se ouvíam.
Entrou a minha vizinha acompanhada do marido. Contei-lhes o que se passava, a injustiça que estava a ser cometida comigo, um rosário de queixas. Desataram a fazer cuorum com o meu chefe e por mais que eu me defendesse nada adiantava.
Duas outras colegas apareceram e juntaram-se ao grupo acusatório.
Já havía muita gente na minha sala, o meu sofá ocupado por estranhos que secundavam as ordens do chefe.
Tapei os ouvidos, neguei-me a ouvir.
Ela entrou. A mulher do retrato. Todos se calaram.
Ela agarrou no monte de papéis espalhados e beijou o centro de cada folha branca. O desenho da sua boca com todos os pormenores e da cor da romã ficou desenhado como se tivesse nascido da própria folha.
Eu estava maravilhado. Orgulhoso da sua bravura em enfrentar todos por mim. Afinal ela gostava de mim e isso deixava-me tão feliz e tranquilo...
A última folha foi a que saíu mais perfeita, parecía uma boca viva, os lábios a mexerem-se.
Estendeu-ma.
Eu comi-a. Soube-me bem. Parecía que assim guardava aquela mulher do retrato para toda a eternidade dentro de mim.
Acordei com um grito. Na televisão um filme do Drácula, a preto e branco.
Senti um arrepio de frio, olhei as horas, meia-noite e trinta e dois.
Como o tempo passara.
Despi-me e enfiei-me na cama. Não me incomodou que provavelmente não conseguría voltar a adormecer.
Já tinha valido a pena.

18 de novembro de 2008

O carrossel mágico

Apanho a geringonça já em andamento, salto com uma leveza e elegância dignas de um alce, aquilo sempre a girar e eu de pé, pernas afastadas, há uma leve brisa que me ondula a roupa toda branca.
É um carrossel, a música de realejo repete-se indefinidamente mas é agradável.
Há cavalos, há unicórnios, há zebras, há panteras. Um colorido imenso que contrasta com a minha alvura.
Eu simplesmente estou ali, sempre de pé e a aguentar-me naquele ondulado de tábuas que estalam sobre o mecanismo, senhor do carrossel.
Quando apanho um baixio reparo que uma onda sobe e avisto uma chávena e o respectivo pires, enormes, gigantescas. Lá dentro uma mulher. Nua. Braços apoiados sobre a beirada da chávena, sempre a sorrir-me, a atirar-me pequenos beijinhos vermelhos que lhe saem da boca pintada e vêm a planar até aos meus lábios.
Surpreendo-me com tal façanha, vou ao seu encontro.
Ela chama-me silenciosa com o braço esticado e o polegar a encaracolar-se para si e para mim num gesto de vem, vem.
É então que perco o equilibrio, mal consigo aguentar-me numa perna quanto mais alçar a outra para me aninhar junto da mulher e dentro da chávena de tamanho XXL.
Ela ajoelha-se, a boca dela à altura das minhas pernas, rasga-me as calças, envergonho-me, cubro-me com as mãos mas o rodar do carrossel não me permite que me esconda e lá me agarro à caneca para não caír.
Felattio.
Dos melhores, dos mais bem feitos e conseguidos.
Com todos os toques, mimos, apertos e ritmos que se possa querer. Ou sonhar.
Quando acordei - garanto - senti tudo como se fosse real...

17 de novembro de 2008

Velocidades

Conduzía o meu carro numa ampla estrada. Só eu, mais ninguém. O carro era esquisito, não tinha pedais, nem caixa, só o volante, mas bastava a minha vontade para que ele ganhasse velocidade ou reduzisse.
Aventurei-me a pensar que seguía a uma alta velocidade.
Aquilo disparou. Senti o meu corpo todo ser atirado contra o encosto do banco, a pele da cara a ser esticada para trás, os olhos a afiarem-se.
Do receio inicial conquistei um á-vontade que me levou a desejar ainda mais velocidade, tanta, que conseguisse que o carro largasse o asfalto e se erguesse nos céus.
Foi quando comecei a ver vários carros a ultrapassarem-me, aquele ruído tipico da velocidade a rasgar o ar, zum, zum, e todos me deixavam para trás!
Afinal eu ía bem devagarinho e de nada me valía pensar em atingir o som que prosseguía sempre no mesmo...
Fiquei triste e até envergonhado quando um setubalinho com barulho de mosca me passou nas calmas.
E mesmo à frente do meu bólide um buraco na estrada, que quanto mais me aproximava mais se alargava sem que eu conseguisse travar e evitá-lo. Entrei por essa cratera, o buraco fechou-se, continuei nessa marcha subterrânea, sem luz, mas destemido.
Como um túnel, o buraco abriu-se para a minha saída e feliz, verifiquei que tinha sido o 1º a chegar ao meu destino.
Lá para trás, como pontinhos perdidos, todos os outros que me havíam ultrapassado.
Acordei cheio de energia.
Também é certo que dormi 8 horas seguidas. Para compensar as olheiras que tinha trazido da véspera...

16 de novembro de 2008

Noite branca

Se me regozijei da pequena sesta tão reparadora e cheia de tranquilidade, à noite é que foi bonito!
Vira de um lado, vira para o outro, calor, arrepios, sede, casa-de-banho, cama, um circuito imparável que me levou a dobrar a madrugada com uma dor de cabeça terrível.
Por 40m de um bom dormir perdi uma noite inteirinha.
Que desespero!
E quanto mais me obrigava a fechar os olhos, encontrar a "tal" posição mais desperto o meu corpo ficava e todas as idéias estapafúrdias me assolaram.
No dia seguinte, uma irritação perante tudo e todos.
Como o mundo é feio...

15 de novembro de 2008

Luz

A escadaria é a mesma de sempre. Lá no fundo o chão quadriculado a preto e branco como um tabuleiro de xadrez.
Os primeiros degraus são descidos com os pés, depois mais rápido, sempre mais, fazendo as curvas suaves junto ao corrimão e já com o corpo deitado, braços abertos, barriga para baixo.
Noto que há uma luz que me acompanha do alto. Levanto a cabeça, por cima uma abóboda em vidro deixa penetrar na escadaria uma luminosidade leitosa, envolvente, entra aos gomos como a forma que a atravessa.
Fico maravilhado, pairo, levito.
Quero subir e sentir a luz de perto. Inverto o meu sentido e voo em circulos até chegar ao topo.
É um halo quente que me dá uma paz enorme, não me encandeia, consigo perfeitamente olhar a luz, ver através do vidro um branco de nuvem única, macia. Toco a abóboda e o meu braço atravessa a matéria como se fosse água, aperto esta cor de algodão, agarro a ambas mãos um pedaço e desço novamente sempre acima dos degraus até ao chão bicolor.
Volto à posição vertical e feliz por ter um bocado deste tesouro nas mãos.
Como-o, são farófias, leves, mornas, macias, uma espuma que se dissolve na boca.
Olho ao alto e a luz permanece intocável, sei que posso lá voltar e tirar quantos pedaços me apeteça que nunca fica a menos.
Acordo.
Dói-me o pescoço, adormeci no sofá, a tarde caíu para o principio da noite.
Vejo as horas. Uma sesta de 40m que valeu por uma semana de dormir.
Como me sinto bem, tranquilo e quase feliz.

14 de novembro de 2008

Dizer adeus

Esta semana tive a triste noticia da morte de um amigo. Uma morte violenta num acidente de automóvel. Fui ao velório com grande custo mas não tive capacidade para o acompanhar à sua última morada.
Tenho vindo a remoer nisto, porque não tive coragem como os outros de ir ao funeral, ver o caixão descer, taparem o buraco.
Deitei-me com este peso, esta noite sabe-se lá porquê, mais do que as outras.
Antes de adormecer falei com ele, disse-lhe o quanto o estimava e que desejava que estivesse bem, sem sofrimento, onde quer que esteja...
A sala era a do velório. Fez-me impressão os maples e as cadeiras cada um de sua nação, o estofado rasgado a mostrar a espuma, as marcas do peso das pessoas vivas que por ali se sentaram a chorar os seus mortos.
Havíam muitas velas mas nenhuma acesa. Flores brancas iguais às do livro que tive quando entrei para a escola. Acho que eram açucenas, que se chamavam.
Dou as minhas condolências à viúva mas hesito; há muitas mulheres, todas iguais, de rosto tapado por um véu negro de renda que não me deixa descortinar quem era a esposa.
Imito os meus outros amigos que segredam algumas palavras a todas. Não sei bem o que lhes digo.
Depois rodeamos o caixão fechado.
Alguém pede para o abrir mas eu digo que não, sei que ele morreu de uma forma trágica e não quero ver o corpo do meu amigo todo desmembrado, ensanguentado.
Ninguém me ouve, é uma das mulheres que com uma força sobrehumana retira a tampa e descobre o defunto.
Tapo a cara com as mãos, recuso-me a ver tal horror.
Chora-se, chora-se tanto naquela sala que eu acabo também a chorar convulsivamente, estridentemente. As mulheres abraçam-me num pranto alto, fico surpreso, olho para dentro do caixão e o morto não está lá.
Percebo então que choram por mim, pela minha morte.
Acordo com o coração disparado, ofegante.
Levanto-me, está frio, esfrego os braços, quero ter a certeza de que foi apenas um sonho, que estou vivo e que o que aconteceu foi apenas a minha consciência a condenar-me por não ter dito o último adeus ao meu amigo.
Deito-me de novo e não consigo reter as lágrimas no silêncio que caiu sobre o meu quarto.

13 de novembro de 2008

Pecados

Sentado na secretária sou interrompido por uma colega de trabalho que me chama. Não é lá muito bonita mas nunca tinha reparado na sensualidade da sua voz. É quente, envolvente e diz o meu nome de uma forma que o torna tão especial na sua boca. Peço-lhe para que o repita, devagar, ela di-lo, suave e grave. Abraço-a, ela aperta-me.
Chega outra colega e chama o meu nome. É diferente mas igualmente cativante a maneira como o profere, primeiro audível depois só murmurado. Esta é uma mulher bonita, adivinho-lhe sob a roupa umas pernas firmes, umas coxas que devem apertar... sinto-lhe desejo. Beijo-a.
Alternadamente, uma e outra abraçam-me, beijam-me, acariciam-me por baixo do casaco, junto ao colarinho, nas orelhas.
Sinto um entusiasmo enorme, tanto mais pela surpresa da coisa. Os outros continuam sentados nas suas mesas de trabalho e nem ligam ao que se passa comigo.
Há uma que se ajoelha aos meus pés, olha-me, diz o meu nome daquela maneira...
A outra despe-se, agarra as minhas mãos e põe-as em concha sobre os seus seios, repete muito baixinho e seguido o meu nome, quase parece uma miar.
Penso que não vou desperdiçar esta oportunidade única.
Ela entra. É a mulher do retrato. Aqueles olhos dizem-me que a despedaço, que a faço sofrer...
Pergunto a mim mesmo o que faz ela no meu trabalho, como deu comigo, fico aflito, quero ir ter com ela, dizer-lhe que até tenho sonhado com ela, mas estou preso entre duas mulheres.
Desperto com a minha própria voz.
Sei que dizía não, não te vás embora.
Porque tinha esta mulher que aparecer no meu sonho? Ela não era deste sonho, este sonho era comigo e com as outras duas! Não com ela!
Sinto raiva, tristeza, frustração e saudades.
Ela continua cá, não saiu da minha cabeça.
Estou a ficar doido, doido!

12 de novembro de 2008

Faltou a cor

Caminho apressado, vou para o emprego, está uma ventania tremenda, a gravata sempre a bater-me na cara não me deixa ver onde ponho os pés. No entanto, não páro nem sequer hesito por onde passar, é sempre a descer e a direito, um passeio muito largo. Não há carros, há ruas, casas, lugares de estacionamento, mas não há carros.
Vejo um grupo de miúdos agachados junto ao lancil.
Chamam-me, perguntam se quero brincar com eles.
Eu rio-me, eles insistem, eu digo que não, que vou trabalhar, eles voltam a pedir para que eu me junte a eles.
Reparo que todos estão de calções, uma roupa estranha para um dia de tanto vento, acho estranho, penso para mim que nem sequer se usa esta roupa nos miúdos.
Um deles agarra-me a mão. Não a sinto, mas sei que me segura os dedos, os meus dedos demasiados grandes para a mão tão pequenina. Vejo-me crescer, crescer tanto, tanto que mal os vejo acocorados. E a gravata sempre a tapar-me os olhos, a pôr-se à frente dos miúdos.
Baixo-me, fico do tamanho deles, agora pequeno como eles, jogam ao berlinde, brinco com eles.
Faço um péssimo jogo, a gravata sempre a entrepôr-se no caminho dos dedos, dos berlindes, das caras dos miúdos.
Ficam aborrecidos, troçam de mim, fazem um barulho tremendo e muito agudo.
Acendo a luz, vejo as horas, destapo-me e ponho as pernas para fora da cama.
Não sei quanto tempo fiquei assim. A pensar em nada.
Sinto que me falta qualquer coisa.
Só então me ocorre que todo o sonho foi a preto e branco.
Volto a deitar-me mas não consigo adormecer.

11 de novembro de 2008

A menina dança?

Toco-lhe a ponta dos dedos, muito ao de leve, tão ao de leve que parece um choque eléctrico.
Ela ergue-se, é do meu tamanho, tem um pescoço enorme, muito esguio, toda ela é semelhante a uma estatueta fina e delgada vermelha, um vermelho profundo e escuro de veludo macio.
Não tem jóias, nenhuma.
Apenas este vestido vermelho agarrado ao corpo, as costas nuas, vejo distintamente os dois furinhos no final da coluna e muito perto das nádegas. O cabelo apanhado ao alto, as minhas mãos a segurarem-lhe o pescoço como quem agarra uma jarra de vidro muito frágil.
Dançamos.
Não, deslizamos, não sinto os meus pés, nunca a piso ou me engano e dela só sinto que parece estar acima do chão.
Dançamos sempre, muito devagar, colados um no outro, sem diálogos, sem nos olharmos, a minha mão nas costas dela a fazerem festas suaves, a outra no pescoço, ela abraçando-me, a cabeça quase deitada no meu ombro.
Cheira bem. Não sei o que é, mas cheira bem.
Fecho os olhos e deixo-me levar neste vai-vem que não sai do mesmo sitio, é apenas estar agarrado a esta mulher, nada mais.
Quando abro os olhos reparo que nos ombros dela cintilam os reflexos de uma enorme bola de espelhos que gira à mesma velocidade de nós.
Estamos sózinhos.
Beijo-a de olhos fechados e sinto-me caír de costas. Não tenho medo, é tudo tão bom e belo.
Abro os olhos como se continuasse a sonhar.
A luz começou a entrar no quarto, é a alvorada.
Levanto-me.
Tenho pena de não conhecer esta mulher... Era capaz de me apaixonar por ela.

10 de novembro de 2008

Azares

Depois de uma noite sem sonhos, sem paragens, sem sobressaltos sobreveio na seguinte o olhar desperto.
Não me sentía ansioso. Apenas não conseguía dormir.
É nestas ocasiões que tudo nos vem à lembrança, que ouvimos com profunda nitidez os barulhinhos da casa, dos vizinhos, da rua.
Como o tempo passou e eu nada de adormecer resolvi inverter a minha posição e mudei-me, ficando os pés na cabeceira, barriga para cima. Nada. Experimentei de lado, do esquerdo e do direito. Depois arrefeci e voltei para debaixo das mantas, achando que dormir para os pés era uma parvoíce. De barriga para baixo. Comecei a desesperar, soquei a almofada, tive calor, tirei o casaco de pijama. Ainda me lembrei que era capaz de sentir frio pela noite fora...
Caminhava descalço, o chão gelado, os olhos sempre postos nos pés.
Adiante vi um monte de notas, moedas, apressei o passo, fiquei contente, tanto dinheiro!
Mas quando me agachei para lhe deitar a mão fiquei horrorizado: estavam envolvidas em fezes!
Recuei.
Senti nojo, repulsa. E um ódio tremendo por ver a minha sorte ali na merda!!!
Tive então uma idéia!
Olhei para todos os lados e não havía vivalma. Tirei as calças de pijama e embrulhei-as à mão para agarrar o dinheiro. Todo nú.
Lembrei-me do casaco de pijama, senti um arrepio que me gelou o sangue.
Mais à frente um outro amontoado de notas. E ainda outro, e mais, e cada vez vez mais e maiores!
Sempre escondidos na mesma sujidade que crescía à medida da altura das notas.
E eu sem mais nada para lhes pegar.
Acordei.
O lençol embrulhado no braço, à volta do pescoço, os pés descobertos.
Senti um vómito subir-me das entranhas.
O resto da noite dormi de janela aberta com um cheiro nauseabundo que não me largou o nariz.

9 de novembro de 2008

Pedras

Recorri à ajuda de quimicos.
Preciso.
Precisei urgentemente de dormir uma noite sem sonhos nem pesadelos. O último deixou-me arrasado.
Evito este tipo de ajuda e aliás, só mesmo em SOS é que lá vou.
O dia seguinte é sempre estranho: boca seca, dificuldade em assentar, um vazio.
Mas dormi.
E não me lembro de nada.

8 de novembro de 2008

Soníferos

Em medicina, os soníferos são chamados “hipnóticos”, do grego “hypnos”, que significa sono artificial.


Também chamados hipnóticos, são os medicamentos que fazem a pessoa adormecer.



Wikipédia

7 de novembro de 2008

Red

Passo a lâmina, desenho uma estrada. Depois outras, desfaço a barba. A água corre sempre em fio, nuvens de espuma acumulam-se numa bacia de louça estalada. Vejo-me apenas num pequeno pedaço de espelho partido que só me deixa ver metade da cara de cada vez.
Acho estranho ter um espelho partido.
Toco-lhe, corto-me numa aresta afiada e deixo um rasto de sangue que pinga como se tivesse uma nascente. Rapidamente a bacia enche-se, não sei onde vazá-la. Transborda, molha-me os pés, começa a encher a divisão onde estou, não é a minha casa-de-banho, fico desnorteado, procuro a porta para saír mas não há porta.
Tento estancar o fio de sangue que se desprende do espelho, mas cada vez me corto mais, dilacero ambas mãos até ficarem sem uso.
Grito, grito muito e choro, peço socorro, sinto o morno do sangue a subir por mim acima, sei que vou afogar-me nele, não quero, não fiz nada, não mereço, não quero morrer!
Acordo em pânico, a soluçar.
Durante algum tempo choro mesmo, não me consigo controlar, horrorizado pelo que acabei de sentir, de sonhar.
Quase sinto vontade de morrer para não ter que passar outra vez por estes pesadelos... Sinto-me tão só, tão desesperado...

6 de novembro de 2008

Cego

Eu disse que ía e fui.
Mas em vão, estava tudo fechado ao publico, mudavam os artistas disseram-me.
Não quis fazer perguntas e regressei triste. Aliás tão triste que nem tenho explicação.
À noite, a repetição das insónias, adormecer nem pensar.
Fiz os truques todos que me ensinaram e mais uns quantos que ouvi aqui e acolá. Nada. Espertina absoluta.
Acomodei-me no sofá armado do comando da televisão. Fiz força para pensar nela, lembrar-me dela, de todos os pormenores reais e os dos sonhos. Mas a verdade é que parecía que me tinham passado uma borracha nas minhas lembranças, uma lavagem ao cérebro. Acho que a insanidade aos poucos está a tomar conta de mim...
Recordei mais umas quantas coisas disparatadas do contexto, contei os losangos do tapete, visualizei os números fixos com que jogo no Euromilhões e de repente, ela!
Levanto-me de um salto do sofá, dirigo-me a ela, abraço-a, beijo-a, dou-lhe uma mordidela suave no pescoço. Ela nunca fala, nunca emite um som sequer, apenas os olhos negros a devassarem-me, uma profundidade que dispensa tudo o mais.
Aventuro-me, baixo-lhe as alças do vestido, sei que o peito dela está próximo das minhas mãos, tudo está ali ao meu alcance mas por uma razão qualquer que não entendo, desespero, desespero até desistir.
É que nunca lhe consigo ver o corpo nú!
Acordo com uma dor enorme no pescoço, gelado, o comando na mão.

5 de novembro de 2008

Ainda ela

Deitei-me tranquilo. Pode-se dizer, sem nada na cabeça.
Creio não ter demorado a adormecer.
Ela voltou. Outra vez aqueles olhos a fitarem-me.
Disse-me um Olá apenas a mexer os lábios sem som.
Desta vez deixei-me de vergonhas e encaro-a, quero que ela perceba que me intriga, que me envolve.
Sinto-a girar à minha volta, lentamente, um movimento de rotação que me obriga a ir virando à procura dos olhos dela, ela sempre com aqule Olá mudo que parece que ainda me excita mais, é um convite, é isso! Um convite para ir até ela!
Acordo fora da cama. Um valente trambolhão!
Sinto-me entorpecido. Aborrecido por ter acordado nesta hora tão despropositada, logo agora...
Olho o relógio, só passaram 20m desde que me recolhi.
Volto a deitar-me.
Mas o sono não chega, viro-me e viro-me e destapo-me e tenho frio e o diabo a sete!
Levanto-me.
Passo a noite no sofá a fazer zapping e a vê-la no ecrã.
Amanhã acabo com isto! Regresso à exposição e pronto!

4 de novembro de 2008

Platonico

Há dias fui a uma exposição de pintura e vi um óleo que era um auto-retrato da sua autora.
Fiquei bastante tempo parado, à distância, a olhá-lo. Prendía-me, nem sei bem explicar porquê, não era bela dessas belezas femininas louras e rosadas, mas de uma tez morena, traços marcados, a boca perfeitamente definida e os olhos... Pois esses é que me atraíam sobremaneira, a arcada supraciliar cheia de personalidade, o afilado do nariz, os cabelos escuros como uma moldura.
Senti-me hipnotizado, enfeitiçado.
Mas parecía que só comigo é que aquilo mexia, ao meu redor nem paravam, seguíam caminho de pescoço torto por alguns segundos e nada mais.
Estava eu nesta admiração quando ouvi uma voz por detrás de mim.
Virei-me.
E qual não foi a minha supresa quando reconheci ali, em três dimensões, a pintora. Senti-me um pouco embaraçado, a mulher tinha uns olhos negros, profundos e parecíam falar mais do que a boca.
Retribuí-lhe um Olá gaguejado (que papelão o meu...) e ela afastou-se devagar, os braços cruzados junto ao peito, dirigindo-se da mesma forma a um casal que observava outro quadro adiante.
Não sei explicar porquê mas senti ciúme. Quería-me único naquela fala, naquele aproximar, como se ela mesmo me desvendasse a razão da minha fixação no seu auto-retrato.
Isto passou.
Pois esta noite sonhei com ela. Repetimos as cenas. Mas ela não se afastou. Abraçou-me. Beijou-me sorvendo a minha boca, depois um lábio de cada vez, as comissuras, o queixo, segurou-me o rosto e eu sentía as mãos dela no meu pescoço mas de uma tal forma que fazíamos amor assim.
Foi uma cena erótica do mais belo que sonhei até hoje.
Acordei. Não consegui voltar a pegar no sono. Parece que ainda a sinto a beijar-me, a abraçar-me, a envolver-me junto ao pescoço... sinto-lhe amor, não sei explicar.
Penso nela. Muito, tanto.
E é sempre belo.

3 de novembro de 2008

Mensagens

Branco como a neve. Tudo branco. Sem árvores, sem casas, sem gente, uma imensidão de branco que se alteia em pequenos montes e desce em linhas suves em vales brancos.
A única cor no meio daquele branco luminoso sou eu. A minha pele, os meus sapatos, a minha camisa de quadrados, contrastam garridamente sobre toda esta mancha.
Caminho, deixo pegadas brancas.
E de repente reparo que as minhas próprias pegadas se adiantam a mim, conduzem-me, assinalam um caminho que sigo sem qualquer hesitação.
Sinto paz. Um silêncio absoluto, calmo que se entranha.
Chego a uma casa branca. Tudo é branco lá dentro, não há porta, faço-me convidado.
E encontro gente, tanta gente que já morreu.
Abraço-os, choro.
Mas eles estão felizes, tranquilos, aquietam-me, celebram a minha visita.
Não há muito diálogo, é mais os olhares, o sentir as mãos deles, mornas, sempre mornas e macias, os abraços tão apertados...
Acordo.
Recordo o rosto de cada um deles, sinto saudades. Mas sorrio.
Onde quer que estejam, sinto dentro de mim, que este foi um recado.

2 de novembro de 2008

En(Cantar)-Versão 2

Sala cheia.
Mesas pequenas redondas, toalhas de veludo pesado da cor do vinho. Média luz. Fumo. Mulheres ofuscam com as jóias em pescoços altos e esguios, vestidos de soirée. Os homens estão de fato preto.
Eu também. E de laço de seda negra, brilhantina, rubi no dedo mindinho.
Aparece o mestre de cerimónias e anuncia a próxima estrela.
Sou eu.
A sala levanta-se dirigida a mim numa ovação que dura por vários segundos. Algumas mulheres beijam-me o rosto, deixam-me marcas de baton vermelhissimo.
Incitam-me a subir até ao palco.
Levanto-me.
E reparo que estou de fato e de calças de pijama.
Fico aflito, quero fugir dali, mas as palmas continuam cada vez mais estaladas, mais ruidosas.
Grito.
Desperto com o meu próprio berro, assustadissimo.
Salto da cama e não me deito mais com medo de adormecer e voltar àquela sala.

1 de novembro de 2008

Acquosa

Mergulho.
Profundamente. Não há ar que me falte. Ondulo dentro de água sem necessidade do uso dos braços, das pernas, dos pés.
Tenho uma sensação de paz dentro de mim, parece que sempre vivi neste meio, sem resistência, sem dor, sem som.
Prossigo ora rente à areia ora vindo à superficie, e quando chego cá acima, quase cego por um sol esplenderoso. Parece que sei qual o rumo que devo tomar, tenho uma direcção certa, um objectivo, rasgo as águas a uma velocidade incrível, pequenas bolhas ficam para trás como um rasto da minha passagem.
De repente páro. Vejo uma mulher, nua, os cabelos louros são enormes, maiores do que o seu próprio tamanho, é bela. Penso para mim que terá cauda de peixe... mas não, duas pernas compridas e esguias, perfeita.
Sigo-a.
Ela deixa que eu a alcance, os cabelos sempre a ondularem ao sabor das marés, sorri-me, abraça-me, sinto o seu corpo junto ao meu. Não é frio, é morno, dum morno que não apetece largar. Beija-me. Continuadamente. Penso nesse instante que vou engolir água. Mas não. Retribuo-lhe os beijos.
Ela segura-me na mão e arrasta-me.
Não consigo ver o caminho por onde me leva, os cabelos longos tiram-me toda a visão.
Sinto-me feliz. Dentro do peito.
Nadamos por muito tempo.
Depois, num repente, sobe a pique, eu de reboque.
Olho para cima.
Estou preso num poço e a mulher desapareceu.
Acordo. Respiro apressado.
Todo molhado. Como os meninos pequeninos. Que sensação desagradável...

31 de outubro de 2008

A razão deste blog

Os créditos a quem os merece. Esta coisa de me ter metido a escrever sobre o que sonho não partiu de mim. Foi o analista que me acompanhou durante algum tempo e após algumas sessões que referiu que sería vantajoso eu anotar os sonhos e os pesadelos que me acometíam.
Assim, em cada sessão semanal eu levava-lhe algumas folhas com apontamentos sobre o que me lembrava.
Da parte dele nunca tive grande retorno, dizía-me sempre que andava a estudar o meu processo mas em concreto, nada.
Foi então que resolvi retomar estas pequenas notas.
Um amigo aconselhou-me que o fizesse como um blog, talvez aparecesse alguém com os meus sonhos e pesadelos que eu, ou pelo menos, que quisessem trocar experiências comigo.
Foi assim que me aventurei neste mundo virtual.
E pelo pouco que tenho visitado por aí, não há muita diferença entre o grotesco dos meus pesadelos e a harmonia dos meus sonhos.

30 de outubro de 2008

Ruas da memória

Passeio por uma rua que recorrentemente me aparece nos sonhos. Na vida real não a conheço nem nada que se lhe assemelhe.
Não se vê nem se sente vivalma.
No entanto - penso em monólogo - que alguém aqui deve viver: Todas as varandas têm lençóis brancos estendidos e ouço vozes por detrás desses lençóis. De cada vez que ergo o olhar à procura dos inquilinos, levanta-se uma aragem morna e adocicada que agita os panos mansamente impedindo-me de ver quem está.
Quando a brisa se aquieta os lençóis voltam à sua posição pendente e trazem-me um cheiro de infância que me faz sorrir: O do sabão.
O puro e corrente sabão que a minha Mãe e a minha Avó usavam nas lavagens de tanque.
Sinto-me feliz, cheio de uma paz interior que me leva a fechar os olhos, a desejar encontrá-las.
Quando abro de novo os olhos é noite cerrada. Quase me sinto perdido, estranho a mudança da rua assim, tão repentina.
Ao longe ouço chamar o meu nome. Mas o diminuitivo que a minha Mãe e a minha Avó tão carinhosamente me chamavam.
Acordo.
Tenho uma saudade no peito que não me aguenta as lágrimas silenciosas que abafo na almofada.
Que saudades tenho destas duas mulheres que já se foram.

29 de outubro de 2008

O livro que (nunca) escrevi

Escrevo. Desalmadamente. As minhas mãos têm uma velocidade que até a mim próprio me surpreendem.
Escrevo numa máquina pequena de escrever, daquelas à antiga. Tudo seguido. Aliás falo, dito para mim, para que as minhas mãos me obedeçam e elas cumprem, sem erros, sem emendas, sem necesidade de reler o que já está enfileirado em frases.
Nunca preciso de trocar de folha, é uma actividade contínua, sem qualquer paragem, hesitação, sou ágil a pensar e a executar.
Termino.
Guardo a folha junto a uma pilha que já tenho despachada, dentro de uma capa de livro preta, titulo a dourado. (Curiosamente não consigo recordar-me do nome deste livro...)
Saio para a rua.
Vou de chapéu, beata na boca, passo gingão.
Passo frente à montra de uma livraria e estaco.
Colo o rosto ao vidro, impressiono-me, vocifero, zango-me. Bato no vidro com toda a força até o estilhaçar e aparecer alguém a ameaçar-me.
Clamo que os livros que estão na montra são meus, de minha autoria.
As pessoas que entretanto se juntaram riem, o som das suas gargalhadas penetra-me nos ouvidos e faz-me mal. Sinto-me tonto, acossado e roubado.
Atiram-me pedras que arrancam do passeio. Eu fujo mas num acto de coragem volto atrás e agarro um dos livros da montra partida.
Abro-o. Sinto-me salvo.
O livro está em branco.
Desperto triste, triste, sem uma explicação de peso. Quase me apetece chorar como um rapazinho a quem roubaram a bicicleta.
Durante todo o dia dou voltas e voltas à cabeça para descobrir qual o título do livro que (não) escrevi.

28 de outubro de 2008

Recados

Alguém à minha frente, muito, muito próximo de mim conta-me qualquer coisa que não entendo. Desonheço se homem ou mulher, apenas sobressai uma boca bem desenhada, cor de romã. Vejo a boca a articular-se mas não percebo som algum. Repete indefinidamente as mesmas palavras, sei pelo movimento dos lábios, mas não consigo ler o que a boca quer dizer.
Peço-lhe que fale, que diga alto e bom som o que me quer dizer, que não a ouço.
Aparece então, nitida, a imagem dessa pessoa e sei agora que se trata de uma mulher, toda vestida de branco, quase uma transparência, pois consigo avistar através do seu corpo um cenário por detrás com nuvens, árvores, um riacho e ainda, aperceber-se dos seus seios, da sua púbis, o contorno das pernas, a curva das ancas.
De alguma maneira sinto-me intimo desta figura, sei que a posso abraçar, até levantar o vestido.
Mas quando a vou agarrar dispara-me nos olhos um milhão de cores, como se fosse uma bola que gira continuadamente até me cegar pela intensidade do colorido.
Ouço então a frase que até há pouco não percebía: "Procura-me, tenho saudades de ti."
Acordo sobressaltado como se me chamassem aos gritos e sacudidelas.
Ouço o telefone tocar. Hesito entre a realidade e a permanência deste sonho.
A insistência do toque tira-me as duvidas, atendo.
Do outro lado uma antiga colega de Faculdade, risos, que já tería incomodado todos da lista telefónica com o meu apelido até dar comigo. Diz que tem saudades de me rever; Que está a organizar um encontro de antigos alunos; Que só faltava eu.
Depois de desligar fico parado no tempo a pensar se ela terá mudado muito... era a menina mais linda do meu Curso. Recordo os beijinhos que trocámos...

27 de outubro de 2008

Dominó

O brilhante da seda negra atrai.
Estou vestido de Dominó. Sou enorme, mais de 2mts. de alto. Avisto os outros que me parecem demasiado pequenos em relação à minha estatura. Movimento-me com graça, todos comentam à minha passagem, abrem alas num corredor de personagens entre damas de anquinhas postiças e cavaleiros emplumados.
Sento-me num trono ricamente paramentado de veludo vermelho.
Sou uma espécie de Rei que não desvenda o rosto.
Tenho o poder sobre os meus súbditos, sinto-o, temem-me pelo mistério e pela figura de autoridade.
Faço um gesto com a mão enluvada de negro.
Todas as damas se viram de costas. Constato que apenas estavam vestidas de frente, atrás estão completamente desnudas, as meias altas terminadas por rendas e laçarotes chamam ainda mais a atenção para as nádegas rosadas que me exibem ao dobrarem-se gentilmente.
Sei que é tudo meu, basta um gesto meu para ter de bandeja qualquer daquelas que se me oferece. Levanto-me e banqueteio-me a bel prazer, sem nunca desvendar a minha identidade e perder a pose de soberano.
Acordo, dá-me vontade de rir.
Quase me sinto um malandro. Mas de barriga cheia. Volto-me para o outro lado e desejo voltar a adormecer pegando na ponta do sonho que deixei. Agora espero que se voltem de frente.

26 de outubro de 2008

Guerras

Estou no meio de uma guerra. Destroços de casas, de pessoas. Sei que tudo o que me rodeia é igual aos documentários que vi sobre a II Guerra Mundial mas ter conhecimento racional desse facto não me retira o medo, o suor, a dor, o sofrimento. Há uma cor vermelha que predomina. Não sei se é sangue...
Procuro pelos meus entre escombros. Descubro gente da minha infância, parentes que já se foram há muito. Há uma mulher de laço na cabeça que para qualquer lado onde vá, seja na busca dos meus seja para me resguardar dos barulhos das bombas a assobiarem me segue. Está sempre calma, as mãos entrelaçadas sobre o regaço, muito branca, uma expressão de menina. Olha-me. Não diz nada. Apenas me olha.
Pergunto-lhe se sabe onde está a minha gente. Mas não responde, não se mexe, apenas me olha fixamente.
Distraio-me.
Uma bomba rebenta.
Acordo. A arfar como se tivesse acabado de disparar de uma corrida. Fico com a sensação de que a mulher então, se afasta da porta do meu quarto.

25 de outubro de 2008

Gastar o tempo

Nas noites em que a insónia perdura para além de uma hora e a cama parece desconfortável, levanto-me.
Para além de todos os truques habituais, é um tempo em que gosto de ler.
Acomodo-me no sofá da sala e dedico-me à leitura do meu livro de cabeceira que tanto pode passar por Pessoa como pela epopeia dos Lusíadas.
Muitas vezes cabeceio, fecho os olhos, tomba o livro, pesadissimo entre mãos.
De esticão apercebo-me do sono a chegar, recolho-me ao leito.
Mas mal sinto os lençóis sobre mim uma espertina energiza-me e lá volto eu à velha insónia.
Regresso ao sofá, puxo a manta de viagem para os pés.
Tantas vezes só dou por mim manhã cedo, gelado e cheio de dores no pescoço, o livro a cravar-se de lado nas costelas e eu, completamente podre de sono.

24 de outubro de 2008

Sonhos

Os sonhos serão uma demonstração da realidade do inconsciente.
Sendo estudados correctamente pode descrever-se, ou melhor, conhecer o momento psicológico do indivíduo, fazendo uma analogia séria como uma "fotografia" do inconsciente. Por isso, o sonho demonstra sempre aspectos da vida emocional. Os sonhos têm uma linguagem própria. Pense-se no seguinte exemplo: Ao ver duas pessoas estrangeiras que falam um idioma que não é do nosso conhecimento, nunca diríamos que elas não sabem falar. Na verdade, o problema é que não conhecemos aquela língua (a sua estrutura, a sua gramática, etc). O mesmo acontece com os sonhos. A sua linguagem são os símbolos, pelo que para entender os seus variados conteúdos, temos que os estudar.





Wikipedia

23 de outubro de 2008

Amputado

Da discussão acesa que mantenho só eu grito, do outro lado há respostas calmas e em tom baixo.
Não sei porque não encaro a pessoa com quem me zango, olho-lhe os pés, vejo-lhe uns ténis pretos sujos e velhos, a orla das bainhas das calças rasgada, poeirenta.
Debato-me sempre e muio por manter a minha opinião e acuso sistematicamente o outro sem o olhar nos olhos.
Por vezes falta-me a voz, quando tento gritar ainda mais alto.
De repente há um silêncio profundo, não recebo resposta do outro lado.
É aí que acho coragem para olhar omeu interlocutor que se aproximou mais de mim.
Não tem um braço, farrapos de carne pendem ainda à mistura com sangue e ossos fracturados, um quase coto sem cicatrização.
Grito horrorizado.
Reconheço-lhe o amigo de infância a quem perdi o rasto há muitos anos.
Desperto a choramingar, a gemer, estou aflito, demoro para me enquadrar na realidade. Penso em telefonar ao meu amigo no dia seguinte, procurá-lo, saber dele.
E temo que algum mal lhe tenha acontecido ou até mesmo que me apareça amputado.

22 de outubro de 2008

En(Cantar)

A sala está completamente cheia.
É uma espécie de bistrot mas com palco.
Vejo distintamente as cortinas vermelhas de veludo, pesadas, orladas de uma franja alta dourada.
Os que se sentam nas pequeninas mesas de tampo de mármore bebem e fumam, há um ruído de fundo elegante e agradável.
Espera-se que o espectaculo comece.
E qual não é o meu espanto quando me chamam ao palco para cantar.
Fico feliz pela ovação que se abate sobre a sala, as cabeças a rodarem e a procurar a minha pessoa.
Chego ao palco, não sei que música vou cantar nem vejo orquestra nenhuma, e no entanto um som de clarinete ecoa, encanta-me, sei o que devo fazer, agarro o micro anos 40, abro a boca e uma melodia nostálgica silencia em admiração quem me ouve.
Acordo, fico muito quieto, ainda consigo ouvir os acordes ao longe, muito ao longe... aconchego o travesseiro ao rosto e durmo feliz.

21 de outubro de 2008

Intermezzo

Não conheço o sitio e no entanto, encontro esquinas de ruas que me são familiares, passeios que me dizem eu já lá ter passado. Tudo é nebuloso, cinzento, pesado, dificulta ver além a espécie de cortina que se abate adiante de meus pés.
Sei que procuro alguém e não encontro.
Parece que giro num passo vicioso pois volto sempre ao mesmo lugar.
Afligo-me por ver o tempo passar e não dar com a pessoa que procuro. Sinto uma enorme pressão no peito como se o cinzento que se alastra me pusesse um pé com força por cima do coração.
O tempo passa e eu sempre naquela caminhada infinita. Pressinto-me perto de quem busco, muito perto, quase estico o braço e a agarro mas por uma qualquer razão não a alcanço e a pessoa não me ouve.
Os meus chamamentos adensam-se num som lento e distorcido.
Sufoco.
Acordo.
Sinto o ar a faltar-me.
Vejo as horas.
Destapo-me, tenho calor, fico uns segundos de olhos abertos a pensar no pesadelo, sinto-me incomodado.
Corro.
Através da cor cinzenta e pastosa, parece uma geléia que me deixa prosseguir com dificuldade.
Entrei em desespero total à procura da mesma pessoa, sinto-me atrasado, encontro gente sem cara mas isso não me assusta, só quero encontrar aquela pessoa e é essa mesmo que desapareceu por completo.
Tenho medo, sinto um medo tão grande que choro, choro muito, choro e ainda corro.
Acordo.
Estou gelado e alagado em suor.
Sinto um quase pânico de voltar a adormecer e pela terceira vez pegar no mesmo pesadelo...

20 de outubro de 2008

Motorhead

Durante a hora do almoço passo os olhos por uma revista da especialidade sobre veículos de duas rodas. São um assombro!
Sempre gostei de motos mas nunca tive o arrojo para comprar uma.
O dia passa-se sem nada de especial: nem contrariedades, nem noticias que me tragam um momento de felicidade excessiva. Tudo normal.
Na hora do deitar a minha preocupação é o pouco tempo que vou ter para dormir. Preocupo-mo com as contas que faço desde que me deito até à hora que tenho de me levantar.
E claro, a insónia instala-se.
De vez em quando espreito o despertador e a ansiedade dos minutos contados ainda me deixa com menos sono. Simplesmente, não consigo sossegar, reconciliar a paz interior para me acomodar nas poucas horas de descanso que me restam.
Lembro-me de tudo e mais alguma coisa. Recordo os fatos pretos dos motards, as motos, as cilindradas, as fotografias em que o condutor arrisca a pele e se deita de lado sobre o asfalto.
É nestas divagações que adormeço...
Estou montado numa moto, mãos sobre os punhos, fato negro de cabedal, capacete com viseira tombada. Mas não ando, não circulo, fico-me por aquela pose impressionante sem mais accção alguma.
Um bando de mulheres louras aproxima-se. São todas iguais. Reparo com insistência na cor da pele delas em contraste com o meu fato escuro.
À vez tomam assento sobre a minha mota, à minha frente, exibem-me as nádegas rosadas e riem muito. Não entendo o que falam, só riem e sorriem para mim.
Disputam a vez, empurram-se, os seios fartos abanam quando se impõem perante as outras para se sentarem na minha moto.
Eu estou impávido e sereno, um mero assistente.
Uma delas, mais ágil, salta para a minha frente e levanta as nádegas na direcção da minha cara, abana-se, dá às ancas, eu vejo tudo e quero, mas por uma razão qualquer não consigo levantar a viseira do capacete e tomar uma atitude.
Vem outra e beija a loura da minha moto. É uma cena de pôr qualquer um completamente fora de si! E eu não me mexo, não me movo.
É aí que percebo que eu sou parte integrante do veículo, como se fosse uma peça, um escape ou uma roda e estou completamente soldado à minha máquina!
O despertador toca.
Estou irritado, confuso e completamente estoirado.

19 de outubro de 2008

Invasões

Entrei num elevador e fiquei confuso ao olhar o painel dos botões. Quería ir para casa, sabía o meu andar mas ao ver que todos os botões tinham os mesmos números fiquei indeciso em qual deles carregar. Contei-os, de baixo para cima. Carreguei no que estava em 5º lugar.
O elevador subiu, subiu, subiu. E porque achei que tinha subido demasiado voltei a carregar no mesmo botão. Desceu. Parou. As portas abriram-se.
Saí e dei comigo num atrium de um hotel.
Fiquei baralhado, pedi desculpa por estar ali mas envergonhado não quis perguntar que elevador devería tomar para regressar a casa.
Um empregado fardado guiou-me e muito afável disse-me que me levaría até ao meu andar.
Subimos. Reparei que o elevador era daqueles à antiga, com banco de capitoné em veludo, tudo muito luxuoso. Saímos e ele foi à minha frente, abriu a porta da minha casa e ficou à espera que eu lhe desse gorjeta. Mas eu não tinha dinheiro e ele ficou furioso. Insultou-me e desapareceu.
Entrei em minha casa e qual não é o meu horror quando vejo estranhos a dormirem na minha cama que estava mesmo no centro da minha sala de estar.
Acordo agitado, chateado, contrariado.
Por todo o dia fico com esta sensação de invasão dos meus dominios.

18 de outubro de 2008

Quase...

Estou encaixado numa mulher que está sentada na minha secretária. Ela tem as pernas afastadas e eu aconchego o meu corpo nesse ângulo aberto.
Abraçamo-nos, beijamo-nos continuadamente. São beijos molhados, sinto a lingua dela muito macia, os lábios a deslizarem, os olhos dela fechados num verdadeiro prazer.
Não a conheço.
Ela segura-me o pescoço e puxa-me mais para ela, a suavidade dos beijos dá lugar a uma ferocidade, morde-me a boca, o queixo, a orelha, excita-me.
De repente fico preocupado pelo lugar onde estou.
Reparo que há mais gente a assistir, mas parece tudo natural, alguns sorriem, parados, especados a observarem-nos, aguardam pela continuação, sinto que esperam que eu retribua e mostre do que sou capaz com uma mulher.
Beijo-a, descubro-lhe os seios. Ela não parece nada incomodada com a nudez que se revela perante a assistência, antes me incita, pede-me, fala baixo, repete mais, mais, mais. Ondula o tronco e avança o peito em direcção à minha boca, insiste nas palavras, exige que a coma, di-lo como uma ordem.
Deita-se sobre a secretária, o sexo exibido perante todos, entro nela, seguro-lhe as coxas que me apertam as costas, é tudo perfeito, um encaixe bestial, sabe-me bem, muito bem.
Há gente que se aproxima para ver de perto, não os quero ali, quero-me só com esta mulher que me dá um prazer como nunca senti, fecho os olhos, concentro-me, quero atingir o orgasmo.
Mas não sou capaz, só sei que não sou capaz, demasiados à minha volta, sinto-me envergonhado, não sou capaz, ela exige-me por palavras rudes que a faça chegar ao climax e eu esforço-me, tento abstrair-me, mas não sou capaz.
Acordo. Mal disposto. Erecto. E dorido.

17 de outubro de 2008

Vida&Morte

Deito-me. Adormeço. Abro os olhos. Assomando à porta do quarto um amigo que já morreu há algum tempo. Chega-se a mim, senta-se na cama. Soergo-me.
Durante algum tempo ele fala, admoesta-me por atitudes do passado. Embora o ouça com atenção penso obssessivamente que tenho de acordar, que isto não passa de um sonho.
Ele agarra-me nos braços e alerta-me: isto não é um sonho.
Eu sei que é mas ele insiste que não.
Fico confuso.
Penso numa forma de despertar para ele desparecer, sei que só assim ele se vai embora e poderei acordar e voltar a dormir sem fantasmas.
Digo-lhe que está morto, logo não poderá falar comigo que estou vivo.
Ele sorri... Diz-me que apareceu apenas para me falar de coisas que não teve tempo.
Grito NÃO.
Estou sentado na minha cama, a almofada ao alto encostada à cabeceira, tal como no sonho.
Quero levantar-me, andar, beber um pouco de água, certificar-me que estou vivo.
Mas tenho medo, muito medo de encontrar o morto.

16 de outubro de 2008

Linguajares

Debato com várias pessoas que nunca vi, sitios, indicações, caminhos, lugares.
Faço-o em diversas linguas, sou perfeitamente entendido, apesar de me colocarem várias questões em simultâneo.
À medida que aponto direcções de braço esticado chego até elas, como se as mostrasse in loco, seguem-me confiadamente, não hesitam nas minhas certezas, admiram os meus sorrisos, é agradável falar com esta gente.
Cada vez se acercam mais pessoas e apesar de todos falarmos ao mesmo tempo não é um ruído, distintamente escuto cada uma delas e elas aguardam pela sua resposta, há quase uma melodia.
A certa altura informo que terei de partir.
Vejo-me num relâmpago junto a um passeio preparado para atravessar a rua, aguardo que o sinal vermelho tombe para o verde.
E é um barulho infernal de trânsito que me desperta.
Apesar do acordar intempestivo, abrupto, sinto-me bem.
Tenho a sensação de ter sido útil. Mesmo com pessoas inventadas.

15 de outubro de 2008

Escadarias

Cá do alto avisto um chão axadrezado. Branco e negro, largos quadrados que contrastam com a cor de mel da madeira de uma escadaria em círculos como um parafuso.
É uma escadaria larga, de degraus não muito altos entre si, mas bem demarcados, macios, quase sinto o cheiro da cera que lhes confere aquele brilho recatado sem encadear.
Estou no topo da escada, agarrado a um varandim de ferro forjado trabalhado ricamente.
Há muitos pormenores a que me prendo, que observo fascinado.
Noto que a vista que obtenho torna-se um canudo, um cilindro fechado até chegar ao bicolor do chão, quase parece um olho que se desdobra num sem-fim.
Penso em descer a escadaria e sinto tonturas... o pé inicia o movimento até ao primeiro degrau, depois o segundo, outro, de seguida mais e mais, vou ganhando velocidade à medida que descrevo a curva larga, uma corrida desenfreada que me leva a pular vários degraus, agora só na ponta dos pés.
Torno-me de tal forma ágil que deixo de tocar o chão, inclino-me, largo a verticalidade e abro os braços, dirijo o meu corpo deitado rente às escadarias, suave, tão suave, voo...
Ao chegar perto do chão retomo o contacto dos pés.
Estou descalço, nos últimos degraus sinto a madeira acetinada e depois o chão, frio, frio...
Acordo devagar.
Não abro os olhos de imediato, sinto-me a pairar e é tão bom.