30 de novembro de 2008

Pelas brasas

Como grande parte da noite de véspera fiquei de olhos abertos o dia seguinte foi penoso.
À tarde aconcheguei-me no sofá, mas determinado a não adormecer, já sabendo das consequências para a noite próxima.
Mas o corpo não quer saber destas coisas. E acompanhado de uma boa música, baixinho, fui embalando, a chuva lá fora, puxei a manta de viagem para mim, depois uma almofada.
Sentía-me mesmo bem.
Estava confortável, sorridente, no meio de amigos, conversa sem rumo.
Acordei com o coração aos pulos com o ruído da trovoada.
A chuva aumentou, agarrei no comando e desliguei a música, puxei os joelhos ao peito e aconcheguei-me no macio do sofá.
Desatei a correr, mas tanto que eu corría, ninguém me agarrava, atingi uma velocidade imensa, todos os meus amigos aos berros e gargalhadas atrás de mim, um bando de fato e gravata a comportarem-se como uns garotos! Até isso me divertía!
Novo estrondo e despertei outra vez, o coração acelerado, a cara marcada dos enfeites da almofada, os pés frios.
Levantei-me contrariado e fiquei com mau feitio até ao final do dia.

29 de novembro de 2008

Labirinto

Passeio-me num jardim luxuriante, as árvores altissímas ondulam brandamente ao sabor de uma brisa morna que me envolve. Cheira bem. Os canteiros estão geometricamente floridos por escala de cores, desde um roxo profundo de amores-perfeitos até ao branco de copo de leite de umas rosas tão abertas como pratos.
Até o chão se cobre de uma relva como nunca vi tão verde.
Tudo é belo, arrumado e limpo.
Intencionalmente entro num labirinto feito de arbustos recortados de figuras humanas. São gigantescas e perfeitas.
Aventuro-me, não receio perder-me pelas várias saídas enganosas, sei o caminho para saír.
Ao roçar numa curva para outro corredor, sinto puxarem-me o braço. É uma mulher de vestido branco, comprido, cabelo até aos pés que vai arrastando pequenas folhas que tombaram dos arbustos. Ri-se. Uma gargalhada bonita a cortar o silêncio. Pergunto-lhe como se chama mas só se ri. Reparo então que tem os olhos vendados, tento tirar-lhe a venda mas ela não deixa e continua a rir-se.
Puxa-me por um braço e leva-me para dentro dos arbustos de figuras humanas. Arranho-me nos galhos, sinto a cara a arder das vergastadas dos ramos mais flexíveis que ela larga na passagem à minha frente. Peço-lhe que páre, que nos vamos perder, mas ela prossegue, cada vez mais distante de mim e sempre a rir.
Guio-me pelo rasto que o seu cabelo deixa mas tenho medo de o pisar e de a magoar.
De repente tudo desaparece: o intrincado caminho, os cabelos longos, a mulher, o seu riso.
Encontro-me num descampado ermo, sem vegetação alguma, apenas terreno pedregoso e terra muito escura. Caminho com cuidado, nuvens de pó levantam-se, parecem cinzas.
Encontro a venda da mulher.
Não sei porquê coloco-a. Não vejo nada. Grito. Grito ainda mais e tento arrancar o pano que me cega mas não sou capaz.
Acordo engasgado com a minha própria saliva, coberto de suor, a almofada e o sitio onde me deito húmidos de transpiração.
Levo o resto da noite a tentar decifrar o que sonhei. Sinto que este sonho se relaciona com alguma coisa que passei mas não me consigo lembrar.

28 de novembro de 2008

Do lado de lá

A rua está completamente deserta. Já passei por aqui muitas vezes, conheço-a, até as pedras da calçada me são familiares, sei onde há falta do desenho ou onde foi restaurado recentemente. Desço-a, impelido por um vento que me empurra as costas.
A rua é enorme, nem sequer consigo ver-lhe o fim, saber se há outras ruas que se entronquem, prédios que façam esquinas.
É tudo rua. Cinzenta, da cor do granito.
Aqui e ali, muito brancas as linhas das passadeiras de peões. Acho estranho, não há mais ninguém, para quê as passadeiras, tão pouco há carros. Só eu. Unicamente eu a descer esta rua infindável e ventosa.
Caminho sempre, não sei para onde vou. Quando olho para trás parece que não saí do mesmo sitio e quando volto a cabeça para medir a distância até ao outro extremo tudo se alonga gradualmente, se afasta dos meus passos.
Apresso-me, sinto que é urgente chegar ao fim.
Talvez se passar para o outro passeio o percurso se encurte.
Procuro as linhas brancas das passadeiras e faço-me à estrada. Mas mal piso essas listas, sinto-me abanar e sacudir como se fosse ser cuspido. Tenho algum receio, corro para o passeio, mas não consigo chegar lá, então volto para o caminho inverso.
A rua estica-se cada vez mais, cada vez mais longe da minha vista. Miro o outro lado e no outro passeio há gente, chamam-me, gritam-me que tenho de atravessar no sitio das passadeiras, sem isso não lhes consigo chegar...
Salto para a passadeira uma outra vez. A mesma coisa mas mais violenta.
Do outro lado as pessoas dizem-me adeus, gritam que não podem esperar mais por mim.
Acordo com o som de um cão que uiva lá fora.
Uma sensação de solidão e abandono aperta-me o pescoço. O cão não se cala.

27 de novembro de 2008

O despertador

Estive muito tempo sem conseguir adormecer.
Sentía-me cansado, demasiado cansado e quando assim estou parece que não há sono que me aquiete, mesmo estando cheio de vontade de dormir.
As preocupações da hora avançar e nada de fechar os olhos ainda me agravaram mais o sossego necessário para me tranquilizar e embalar.
Agarrei no despertador e confirmei a hora do acordar. Tudo certo. Ainda voltei a verificar mais uma vez, fiz mentalmente contas às horas que me faltavam para me levantar.
Acordei num repente, olhei o relógio, já tinha passado da hora de me apresentar ao serviço.
Corri para o guarda-fatos, nem tempo para fazer a barba ou tomar banho.
Em vez de ir de carro, resolvi ir a pé para não me meter em filas.
Desatei a bater com os calcanhares no rabo e tão rápido o fiz, que levantei do chão e cheguei rápido ao emprego.
Mas quando me sentei na minha secretária reparei que estava de chinelos de quarto, as calças não eram minhas pois estavam pelas canelas e toda a gente se queixava que eu cheirava mal.
A vergonha caíu sobre mim, quis desaparecer, não existir...
E o chefe sempre a chamar-me, a impôr a sua vontade, a obrigar-me a ir ao seu gabinete, passar pelo sector inteiro, toda a gente a ridicularizar-me naquela figura.
Dei um safanão, o despertador caíu-me das mãos e desatou a rodar no seu próprio som irritante.
Agarrei-o, calei-o e verifiquei que em dez minutos tinha adormecido de luz acesa, meio sentado à cabeceira da cama.
Apesar de estar tapado tinha os chinelos calçados...
Só me faltava esta! Será que dei em sonâmbulo?

26 de novembro de 2008

O rei dos bolos

A mesa, enorme, prolongava-se para além do que a minha vista conseguía alcançar.
As iguarias eram quase todas doces, bolos monumentais e altos como os de uma festa de casamento. Muitos arranjos de flores, alguns altos como árvores plantadas na toalha branca. Mas eu vislumbrava todos os que se lambuzavam à minha mesa e incitava-os a comer, a provar disto e daquilo, a enterrarem os dentes nos bolos cheios de cremes brancos e rosados, uma profusão de chocolates, cheiro de baunilha, morangos grandes como maçãs que parecíam ter sido envernizados tal era o brilho.
Eu no topo da mesa. Bastava-me desejar, imaginar qualquer tipo de pastelaria e ela logo aparecía, um odor adocicado que embebedava.
A servir os meus convidados, criados de peruca, uma farda comestível que eles próprios oferecíam como cartão de visita a quem ía aparecendo.
Tudo me parecía normal, razoável, eu dono e senhor de um castelo feito de açúcares como a história infantil. Mas sentía-me a salvo de bruxas e de todo e qualquer mal. Eu era rei.
Eu próprio coroado de nogat.
Todos me adoravam, lambíam-me as mãos doces, os anéis de pedras preciosas, os punhos de renda, a jaqueta.
Acordei. Fiquei muito sossegado.
Perguntei-me porque razão sonhara com doces, bolos, confeitaria, eu que nem sou apreciador de tais coisas...
A imagem de um rei lambido deu-me um enjoo e achei-me detestável em tal soberania.

25 de novembro de 2008

Porque sim e porque não

Tanto pensei porque ocorrem os sonhos e pesadelos que acabei por adormecer.
E se sonhei... não me recordo de nada.
Mas acordei com a cabeça vazia, alguma dificuldade em fazer a rotina da manhã. Dormente, a bem dizer.
Quase parece que não funciono sem um sonho ou até mesmo um pesadelo que me sacuda.

24 de novembro de 2008

Até hoje sem resposta

Dizem que nos lembramos do que sonhámos se tal acontecer muito perto do acordar.
Mas eu duvido...
Já me aconteceu sonhar pela noite fora com interregnos cheio de suores gelados e palpitações e voltando a adormecer pego no sonho ou pesadelo exactamente no ponto onde o deixei.
Não sou dado a esoterismos nem coisas de bruxaria, mas a verdade, é que tantas vezes estes sonhos me atormentam como avisos em grandes placas ou prenúncios de avistar alguém que há muito não vejo nem recordo.
Se do estado de vigilia passamos para uma plataforma do subconsciente, como se consegue separar o racional do improvável, o plausível do almejado?
Todos os sonhos que tenho frequentemente com mulheres que nunca vi, em que o acto sexual parece ser o único objectivo não fazem de mim um homem carente nem um obsecado pelo coito; assim como os pesadelos em que morro nas quedas não me tornam desconfiado de quem de mim se aproxima pelas costas.
Em que sitio estou então?
Num insconsciente? Num coma vigil? Ou numa dimensão inexplicável em que a resolução passa pela apreensão de bocados de realidade e os mistura com o desejo profundo?
Quem souber que mo diga.
Ou quem tiver opinião sobre o assunto que ma acrescente à outras que tenho de profissionais na matéria.
E que me deixaram ainda mais baralhado!

23 de novembro de 2008

Ajuda-me!

Estou sentado no parapeito de uma janela que fica à face com a verticalidade do prédio. Espreito, de dedos cravados como garras, vejo um revestimento de azulejos azul e branco, alguns amarelos, florões ou melhor, quadrados de flores de lis.
Não sei como vim aqui parar, sinto vertigens. De repente reconheço a janela, os azulejos de outros sonhos, digo para mim mesmo que isto é apenas um sonho e basta acordar para saír desta posição instável.
Tanto tenho medo como tenho uma atracção que me puxa para me debruçar e caír.
Questiono-me quanto ao que possa fazer, sinto medo, um medo que me paralisa.
Os cortinados de gaze branca ondulam e batem-me na cara, prendem-se na barba, sacudo a cabeça, sinto-me asfixiar, sinto que alguém invisivel me quer fazer mal.
Grito pela minha mãe, uma, duas vezes.
Ela responde-me ao longe, sem se aproximar da minha aflição.
Insisto para que me ajude, que me puxe para dentro de casa.
Num repente ela está ao meu lado, do lado de dentro. Se se encostar a mim atira-me lá para baixo.
Peço-lhe novamente e já num tom de piedade que me ajude, que me ajude... Mas ela afasta-se e diz-me que eu tenho de aprender sózinho e apenas por mim a resolver as coisas, de outra forma nunca aprenderei.
Grito por ela que desapareceu completamente.
O sobressalto da queda desperta-me.
Tenho saudades da minha mãe. Tenho uma tristeza imensa dentro de mim por ela me ter abandonado no meu sonho.
Amarguro-me.
Todo o dia uma dor sem explicação me abranda o bater do coração, tudo me deprime.

22 de novembro de 2008

Uma perfeita desconhecida

Entro no Metropolitano. A abarrotar. Viajo encostado às portas, espalmado, cheio de calor, sem ar para respirar, parece que toda esta multidão nada sente, os olhos parados.
Mais uma estação: sou violetamente socado na zona dos rins por mais uns quantos que se atiram para dentro da carruagem. Tão pouco tenho espaço para me virar e exigir um pouco de educação.
O metro guincha com a velocidade que atinge. As mulheres têm os cabelos a esvoaçar e os homens as gravatas de lado.
No meio de tanta gente sinto que alguém me olha fixamente. Mas sinto-o no pescoço como se fosse uma picada. Viro a cabeça e no relance avisto uma mulher. Sorri-me.
Abraça-me pelas costas, as mãos dela muito hábeis entram dentro dos meus bolsos. Acaricia-me. Fico aflito.
Sinto-lhe os mamilos nas costas num roçar lento que me põe louco, ainda mais porque não consigo voltar-me e encará-la.
As mãos dela percorrem-me as pernas, o interior, a face externa em ligeiras pressões como que a experimentar-me, a desafiar-me.
Sopra ao de leve no meu pescoço, nas minhas orelhas e eu naquela posição de estátua.
Sinto um chupão prolongado junto ao colarinho, aquilo arrepia-me, agarro-lhe uma das mãos mas ela guia a minha própria mão ao meu sexo e afaga-me por cima das calças. Sinto uma erecção cada vez mais pronunciada.
Abre-me o fecho devagar, leva uma eternidade, ferra-me os dentes no pescoço e prende um pouco de carne, magoa-me e excita-me.
Toda ela se roça por mim, pelas minhas costas, mete a mão por dentro das calças e aperta-me o sexo com uma segurança e força controlada. Masturba-me lentamente. Fecho os olhos, não quero saber onde estou ou se alguém possa adivinhar o que está a acontecer.
Pelo altifalante anunciam a chegada à próxima estação com ligação a uma outra qualquer.
Ela pára. Eu sinto-me todo a tremer, a latejar.
Toda a gente sai e fico sózinho na carruagem. Procuro um recanto onde possa terminar o que ela começou mas mal o descubro a carruagem enche-se de novo e ela regressa. Sorrio.
Acordo um pouco enjoado.
Fico acordado por bastante tempo a reviver o sonho.

21 de novembro de 2008

Bola de fogo

Levanto-me da cama e vou à janela.
Há uma claridade incendiada que me leva a suspeitar que o prédio arde, que corro perigo.
Abro as cortinas e a luz do dia bate-me em cheio na cara, no peito. Aquece-me. Fico de braços abertos a receber aquele calor.
Olho o sol já alto.
É precisamente quando o encaro que ele se torna uma bola laranja de fogo, giratória, cada vez maior e ganhando velocidade em direcção a mim. Assusto-me, mas não consigo tirar as mãos e os braços, fechar a janela e proteger-me, está tudo dormente, um formigueiro que me tira o comando dos movimentos, que me mantém naquela posição de cristo crucificado, sei que não conseguirei evitar o embate do sol contra mim.
Perante a evidência, resigno-me, espero que a dor seja curta e que acabe rápido comigo, que não sinta aquele lume a queimar-me.
Mas apenas uma faúlha se solta daquela bola de fogo que fica a pairar à minha frente, cega-me.
Essa partícula incendiada ataca-me o peito, o coração, queima lentamente até se sentir o cheiro de carne queimada, o buraco que abre para me levar o que tenho dentro.
Grito de dor, o meu tronco em chamas e fumegante arde lentamente e eu cego e preso nada posso fazer, sei que vou perecer com tamanha dor, quase começo a gostar...
Desperto com um estremeção.
O quarto está escuro. O meu coração acelerado, tento acalmar-me, pouso a mão no peito, está cá tudo, intacto.
Tapo a cabeça e respiro profundamente. Mas não de alivio.

20 de novembro de 2008

Vigília

Vigília (<latim vigilia = guarda ou vigia) é um estado ordinário de consciência, complementar ao estado de sono, ocorrente no ser humano e noutros animais superiores, em que há máxima ou plena manifestação da actividade perceptivo-sensorial e motora voluntária.


Ao dizer-se complementar, em conjugação com ordinário, quer significar tão somente, que na maioria dos indivíduos (com destaque aqui para os humanos), tais estados de consciência alternam-se, complementam-se ordinariamente.


O Estado de vigília é caracterizado por um padrão de ondas cerebrais típico, essencialmente diferente do padrão do estado de sono, bem como do verificado nos demais estados de consciência.





in Wikipedia

19 de novembro de 2008

Ela outra vez

Tive um dia de torrar! Cheguei a casa completamente roto, sem fome, só a pensar em cama e dormir, descansar, descansar e descansar.
Atirei-me para cima do sofá e num acto vicioso liguei a televisão: novelas, muito do mesmo em todos os canais, zapping, uma pepineira em todos.
Descalçei-me e fiquei por ali naquela moleza do nada.
O meu chefe chegou e desatou a pedir-me um monte de coisas, tudo ao mesmo tempo e tudo urgente. Perante a minha incredulidade de o ver na minha sala e no meu sofá ergui-me de um salto e impus a minha qualidade de proprietário da casa ordenando que se retirasse. Ele desatou a rir e num instante ficou sério.
Atirou-me um monte de papelada à cara, marcou um prazo e disse que era para ser feito tudo à mão. À mão?! Mas o quê? Eu não sabía o que era para fazer e ainda por cima à mão... aquela pergunta não me saía da boca e era ele a mandar e eu a perguntar, dois surdos que não se ouvíam.
Entrou a minha vizinha acompanhada do marido. Contei-lhes o que se passava, a injustiça que estava a ser cometida comigo, um rosário de queixas. Desataram a fazer cuorum com o meu chefe e por mais que eu me defendesse nada adiantava.
Duas outras colegas apareceram e juntaram-se ao grupo acusatório.
Já havía muita gente na minha sala, o meu sofá ocupado por estranhos que secundavam as ordens do chefe.
Tapei os ouvidos, neguei-me a ouvir.
Ela entrou. A mulher do retrato. Todos se calaram.
Ela agarrou no monte de papéis espalhados e beijou o centro de cada folha branca. O desenho da sua boca com todos os pormenores e da cor da romã ficou desenhado como se tivesse nascido da própria folha.
Eu estava maravilhado. Orgulhoso da sua bravura em enfrentar todos por mim. Afinal ela gostava de mim e isso deixava-me tão feliz e tranquilo...
A última folha foi a que saíu mais perfeita, parecía uma boca viva, os lábios a mexerem-se.
Estendeu-ma.
Eu comi-a. Soube-me bem. Parecía que assim guardava aquela mulher do retrato para toda a eternidade dentro de mim.
Acordei com um grito. Na televisão um filme do Drácula, a preto e branco.
Senti um arrepio de frio, olhei as horas, meia-noite e trinta e dois.
Como o tempo passara.
Despi-me e enfiei-me na cama. Não me incomodou que provavelmente não conseguría voltar a adormecer.
Já tinha valido a pena.

18 de novembro de 2008

O carrossel mágico

Apanho a geringonça já em andamento, salto com uma leveza e elegância dignas de um alce, aquilo sempre a girar e eu de pé, pernas afastadas, há uma leve brisa que me ondula a roupa toda branca.
É um carrossel, a música de realejo repete-se indefinidamente mas é agradável.
Há cavalos, há unicórnios, há zebras, há panteras. Um colorido imenso que contrasta com a minha alvura.
Eu simplesmente estou ali, sempre de pé e a aguentar-me naquele ondulado de tábuas que estalam sobre o mecanismo, senhor do carrossel.
Quando apanho um baixio reparo que uma onda sobe e avisto uma chávena e o respectivo pires, enormes, gigantescas. Lá dentro uma mulher. Nua. Braços apoiados sobre a beirada da chávena, sempre a sorrir-me, a atirar-me pequenos beijinhos vermelhos que lhe saem da boca pintada e vêm a planar até aos meus lábios.
Surpreendo-me com tal façanha, vou ao seu encontro.
Ela chama-me silenciosa com o braço esticado e o polegar a encaracolar-se para si e para mim num gesto de vem, vem.
É então que perco o equilibrio, mal consigo aguentar-me numa perna quanto mais alçar a outra para me aninhar junto da mulher e dentro da chávena de tamanho XXL.
Ela ajoelha-se, a boca dela à altura das minhas pernas, rasga-me as calças, envergonho-me, cubro-me com as mãos mas o rodar do carrossel não me permite que me esconda e lá me agarro à caneca para não caír.
Felattio.
Dos melhores, dos mais bem feitos e conseguidos.
Com todos os toques, mimos, apertos e ritmos que se possa querer. Ou sonhar.
Quando acordei - garanto - senti tudo como se fosse real...

17 de novembro de 2008

Velocidades

Conduzía o meu carro numa ampla estrada. Só eu, mais ninguém. O carro era esquisito, não tinha pedais, nem caixa, só o volante, mas bastava a minha vontade para que ele ganhasse velocidade ou reduzisse.
Aventurei-me a pensar que seguía a uma alta velocidade.
Aquilo disparou. Senti o meu corpo todo ser atirado contra o encosto do banco, a pele da cara a ser esticada para trás, os olhos a afiarem-se.
Do receio inicial conquistei um á-vontade que me levou a desejar ainda mais velocidade, tanta, que conseguisse que o carro largasse o asfalto e se erguesse nos céus.
Foi quando comecei a ver vários carros a ultrapassarem-me, aquele ruído tipico da velocidade a rasgar o ar, zum, zum, e todos me deixavam para trás!
Afinal eu ía bem devagarinho e de nada me valía pensar em atingir o som que prosseguía sempre no mesmo...
Fiquei triste e até envergonhado quando um setubalinho com barulho de mosca me passou nas calmas.
E mesmo à frente do meu bólide um buraco na estrada, que quanto mais me aproximava mais se alargava sem que eu conseguisse travar e evitá-lo. Entrei por essa cratera, o buraco fechou-se, continuei nessa marcha subterrânea, sem luz, mas destemido.
Como um túnel, o buraco abriu-se para a minha saída e feliz, verifiquei que tinha sido o 1º a chegar ao meu destino.
Lá para trás, como pontinhos perdidos, todos os outros que me havíam ultrapassado.
Acordei cheio de energia.
Também é certo que dormi 8 horas seguidas. Para compensar as olheiras que tinha trazido da véspera...

16 de novembro de 2008

Noite branca

Se me regozijei da pequena sesta tão reparadora e cheia de tranquilidade, à noite é que foi bonito!
Vira de um lado, vira para o outro, calor, arrepios, sede, casa-de-banho, cama, um circuito imparável que me levou a dobrar a madrugada com uma dor de cabeça terrível.
Por 40m de um bom dormir perdi uma noite inteirinha.
Que desespero!
E quanto mais me obrigava a fechar os olhos, encontrar a "tal" posição mais desperto o meu corpo ficava e todas as idéias estapafúrdias me assolaram.
No dia seguinte, uma irritação perante tudo e todos.
Como o mundo é feio...

15 de novembro de 2008

Luz

A escadaria é a mesma de sempre. Lá no fundo o chão quadriculado a preto e branco como um tabuleiro de xadrez.
Os primeiros degraus são descidos com os pés, depois mais rápido, sempre mais, fazendo as curvas suaves junto ao corrimão e já com o corpo deitado, braços abertos, barriga para baixo.
Noto que há uma luz que me acompanha do alto. Levanto a cabeça, por cima uma abóboda em vidro deixa penetrar na escadaria uma luminosidade leitosa, envolvente, entra aos gomos como a forma que a atravessa.
Fico maravilhado, pairo, levito.
Quero subir e sentir a luz de perto. Inverto o meu sentido e voo em circulos até chegar ao topo.
É um halo quente que me dá uma paz enorme, não me encandeia, consigo perfeitamente olhar a luz, ver através do vidro um branco de nuvem única, macia. Toco a abóboda e o meu braço atravessa a matéria como se fosse água, aperto esta cor de algodão, agarro a ambas mãos um pedaço e desço novamente sempre acima dos degraus até ao chão bicolor.
Volto à posição vertical e feliz por ter um bocado deste tesouro nas mãos.
Como-o, são farófias, leves, mornas, macias, uma espuma que se dissolve na boca.
Olho ao alto e a luz permanece intocável, sei que posso lá voltar e tirar quantos pedaços me apeteça que nunca fica a menos.
Acordo.
Dói-me o pescoço, adormeci no sofá, a tarde caíu para o principio da noite.
Vejo as horas. Uma sesta de 40m que valeu por uma semana de dormir.
Como me sinto bem, tranquilo e quase feliz.

14 de novembro de 2008

Dizer adeus

Esta semana tive a triste noticia da morte de um amigo. Uma morte violenta num acidente de automóvel. Fui ao velório com grande custo mas não tive capacidade para o acompanhar à sua última morada.
Tenho vindo a remoer nisto, porque não tive coragem como os outros de ir ao funeral, ver o caixão descer, taparem o buraco.
Deitei-me com este peso, esta noite sabe-se lá porquê, mais do que as outras.
Antes de adormecer falei com ele, disse-lhe o quanto o estimava e que desejava que estivesse bem, sem sofrimento, onde quer que esteja...
A sala era a do velório. Fez-me impressão os maples e as cadeiras cada um de sua nação, o estofado rasgado a mostrar a espuma, as marcas do peso das pessoas vivas que por ali se sentaram a chorar os seus mortos.
Havíam muitas velas mas nenhuma acesa. Flores brancas iguais às do livro que tive quando entrei para a escola. Acho que eram açucenas, que se chamavam.
Dou as minhas condolências à viúva mas hesito; há muitas mulheres, todas iguais, de rosto tapado por um véu negro de renda que não me deixa descortinar quem era a esposa.
Imito os meus outros amigos que segredam algumas palavras a todas. Não sei bem o que lhes digo.
Depois rodeamos o caixão fechado.
Alguém pede para o abrir mas eu digo que não, sei que ele morreu de uma forma trágica e não quero ver o corpo do meu amigo todo desmembrado, ensanguentado.
Ninguém me ouve, é uma das mulheres que com uma força sobrehumana retira a tampa e descobre o defunto.
Tapo a cara com as mãos, recuso-me a ver tal horror.
Chora-se, chora-se tanto naquela sala que eu acabo também a chorar convulsivamente, estridentemente. As mulheres abraçam-me num pranto alto, fico surpreso, olho para dentro do caixão e o morto não está lá.
Percebo então que choram por mim, pela minha morte.
Acordo com o coração disparado, ofegante.
Levanto-me, está frio, esfrego os braços, quero ter a certeza de que foi apenas um sonho, que estou vivo e que o que aconteceu foi apenas a minha consciência a condenar-me por não ter dito o último adeus ao meu amigo.
Deito-me de novo e não consigo reter as lágrimas no silêncio que caiu sobre o meu quarto.

13 de novembro de 2008

Pecados

Sentado na secretária sou interrompido por uma colega de trabalho que me chama. Não é lá muito bonita mas nunca tinha reparado na sensualidade da sua voz. É quente, envolvente e diz o meu nome de uma forma que o torna tão especial na sua boca. Peço-lhe para que o repita, devagar, ela di-lo, suave e grave. Abraço-a, ela aperta-me.
Chega outra colega e chama o meu nome. É diferente mas igualmente cativante a maneira como o profere, primeiro audível depois só murmurado. Esta é uma mulher bonita, adivinho-lhe sob a roupa umas pernas firmes, umas coxas que devem apertar... sinto-lhe desejo. Beijo-a.
Alternadamente, uma e outra abraçam-me, beijam-me, acariciam-me por baixo do casaco, junto ao colarinho, nas orelhas.
Sinto um entusiasmo enorme, tanto mais pela surpresa da coisa. Os outros continuam sentados nas suas mesas de trabalho e nem ligam ao que se passa comigo.
Há uma que se ajoelha aos meus pés, olha-me, diz o meu nome daquela maneira...
A outra despe-se, agarra as minhas mãos e põe-as em concha sobre os seus seios, repete muito baixinho e seguido o meu nome, quase parece uma miar.
Penso que não vou desperdiçar esta oportunidade única.
Ela entra. É a mulher do retrato. Aqueles olhos dizem-me que a despedaço, que a faço sofrer...
Pergunto a mim mesmo o que faz ela no meu trabalho, como deu comigo, fico aflito, quero ir ter com ela, dizer-lhe que até tenho sonhado com ela, mas estou preso entre duas mulheres.
Desperto com a minha própria voz.
Sei que dizía não, não te vás embora.
Porque tinha esta mulher que aparecer no meu sonho? Ela não era deste sonho, este sonho era comigo e com as outras duas! Não com ela!
Sinto raiva, tristeza, frustração e saudades.
Ela continua cá, não saiu da minha cabeça.
Estou a ficar doido, doido!

12 de novembro de 2008

Faltou a cor

Caminho apressado, vou para o emprego, está uma ventania tremenda, a gravata sempre a bater-me na cara não me deixa ver onde ponho os pés. No entanto, não páro nem sequer hesito por onde passar, é sempre a descer e a direito, um passeio muito largo. Não há carros, há ruas, casas, lugares de estacionamento, mas não há carros.
Vejo um grupo de miúdos agachados junto ao lancil.
Chamam-me, perguntam se quero brincar com eles.
Eu rio-me, eles insistem, eu digo que não, que vou trabalhar, eles voltam a pedir para que eu me junte a eles.
Reparo que todos estão de calções, uma roupa estranha para um dia de tanto vento, acho estranho, penso para mim que nem sequer se usa esta roupa nos miúdos.
Um deles agarra-me a mão. Não a sinto, mas sei que me segura os dedos, os meus dedos demasiados grandes para a mão tão pequenina. Vejo-me crescer, crescer tanto, tanto que mal os vejo acocorados. E a gravata sempre a tapar-me os olhos, a pôr-se à frente dos miúdos.
Baixo-me, fico do tamanho deles, agora pequeno como eles, jogam ao berlinde, brinco com eles.
Faço um péssimo jogo, a gravata sempre a entrepôr-se no caminho dos dedos, dos berlindes, das caras dos miúdos.
Ficam aborrecidos, troçam de mim, fazem um barulho tremendo e muito agudo.
Acendo a luz, vejo as horas, destapo-me e ponho as pernas para fora da cama.
Não sei quanto tempo fiquei assim. A pensar em nada.
Sinto que me falta qualquer coisa.
Só então me ocorre que todo o sonho foi a preto e branco.
Volto a deitar-me mas não consigo adormecer.

11 de novembro de 2008

A menina dança?

Toco-lhe a ponta dos dedos, muito ao de leve, tão ao de leve que parece um choque eléctrico.
Ela ergue-se, é do meu tamanho, tem um pescoço enorme, muito esguio, toda ela é semelhante a uma estatueta fina e delgada vermelha, um vermelho profundo e escuro de veludo macio.
Não tem jóias, nenhuma.
Apenas este vestido vermelho agarrado ao corpo, as costas nuas, vejo distintamente os dois furinhos no final da coluna e muito perto das nádegas. O cabelo apanhado ao alto, as minhas mãos a segurarem-lhe o pescoço como quem agarra uma jarra de vidro muito frágil.
Dançamos.
Não, deslizamos, não sinto os meus pés, nunca a piso ou me engano e dela só sinto que parece estar acima do chão.
Dançamos sempre, muito devagar, colados um no outro, sem diálogos, sem nos olharmos, a minha mão nas costas dela a fazerem festas suaves, a outra no pescoço, ela abraçando-me, a cabeça quase deitada no meu ombro.
Cheira bem. Não sei o que é, mas cheira bem.
Fecho os olhos e deixo-me levar neste vai-vem que não sai do mesmo sitio, é apenas estar agarrado a esta mulher, nada mais.
Quando abro os olhos reparo que nos ombros dela cintilam os reflexos de uma enorme bola de espelhos que gira à mesma velocidade de nós.
Estamos sózinhos.
Beijo-a de olhos fechados e sinto-me caír de costas. Não tenho medo, é tudo tão bom e belo.
Abro os olhos como se continuasse a sonhar.
A luz começou a entrar no quarto, é a alvorada.
Levanto-me.
Tenho pena de não conhecer esta mulher... Era capaz de me apaixonar por ela.

10 de novembro de 2008

Azares

Depois de uma noite sem sonhos, sem paragens, sem sobressaltos sobreveio na seguinte o olhar desperto.
Não me sentía ansioso. Apenas não conseguía dormir.
É nestas ocasiões que tudo nos vem à lembrança, que ouvimos com profunda nitidez os barulhinhos da casa, dos vizinhos, da rua.
Como o tempo passou e eu nada de adormecer resolvi inverter a minha posição e mudei-me, ficando os pés na cabeceira, barriga para cima. Nada. Experimentei de lado, do esquerdo e do direito. Depois arrefeci e voltei para debaixo das mantas, achando que dormir para os pés era uma parvoíce. De barriga para baixo. Comecei a desesperar, soquei a almofada, tive calor, tirei o casaco de pijama. Ainda me lembrei que era capaz de sentir frio pela noite fora...
Caminhava descalço, o chão gelado, os olhos sempre postos nos pés.
Adiante vi um monte de notas, moedas, apressei o passo, fiquei contente, tanto dinheiro!
Mas quando me agachei para lhe deitar a mão fiquei horrorizado: estavam envolvidas em fezes!
Recuei.
Senti nojo, repulsa. E um ódio tremendo por ver a minha sorte ali na merda!!!
Tive então uma idéia!
Olhei para todos os lados e não havía vivalma. Tirei as calças de pijama e embrulhei-as à mão para agarrar o dinheiro. Todo nú.
Lembrei-me do casaco de pijama, senti um arrepio que me gelou o sangue.
Mais à frente um outro amontoado de notas. E ainda outro, e mais, e cada vez vez mais e maiores!
Sempre escondidos na mesma sujidade que crescía à medida da altura das notas.
E eu sem mais nada para lhes pegar.
Acordei.
O lençol embrulhado no braço, à volta do pescoço, os pés descobertos.
Senti um vómito subir-me das entranhas.
O resto da noite dormi de janela aberta com um cheiro nauseabundo que não me largou o nariz.

9 de novembro de 2008

Pedras

Recorri à ajuda de quimicos.
Preciso.
Precisei urgentemente de dormir uma noite sem sonhos nem pesadelos. O último deixou-me arrasado.
Evito este tipo de ajuda e aliás, só mesmo em SOS é que lá vou.
O dia seguinte é sempre estranho: boca seca, dificuldade em assentar, um vazio.
Mas dormi.
E não me lembro de nada.

8 de novembro de 2008

Soníferos

Em medicina, os soníferos são chamados “hipnóticos”, do grego “hypnos”, que significa sono artificial.


Também chamados hipnóticos, são os medicamentos que fazem a pessoa adormecer.



Wikipédia

7 de novembro de 2008

Red

Passo a lâmina, desenho uma estrada. Depois outras, desfaço a barba. A água corre sempre em fio, nuvens de espuma acumulam-se numa bacia de louça estalada. Vejo-me apenas num pequeno pedaço de espelho partido que só me deixa ver metade da cara de cada vez.
Acho estranho ter um espelho partido.
Toco-lhe, corto-me numa aresta afiada e deixo um rasto de sangue que pinga como se tivesse uma nascente. Rapidamente a bacia enche-se, não sei onde vazá-la. Transborda, molha-me os pés, começa a encher a divisão onde estou, não é a minha casa-de-banho, fico desnorteado, procuro a porta para saír mas não há porta.
Tento estancar o fio de sangue que se desprende do espelho, mas cada vez me corto mais, dilacero ambas mãos até ficarem sem uso.
Grito, grito muito e choro, peço socorro, sinto o morno do sangue a subir por mim acima, sei que vou afogar-me nele, não quero, não fiz nada, não mereço, não quero morrer!
Acordo em pânico, a soluçar.
Durante algum tempo choro mesmo, não me consigo controlar, horrorizado pelo que acabei de sentir, de sonhar.
Quase sinto vontade de morrer para não ter que passar outra vez por estes pesadelos... Sinto-me tão só, tão desesperado...

6 de novembro de 2008

Cego

Eu disse que ía e fui.
Mas em vão, estava tudo fechado ao publico, mudavam os artistas disseram-me.
Não quis fazer perguntas e regressei triste. Aliás tão triste que nem tenho explicação.
À noite, a repetição das insónias, adormecer nem pensar.
Fiz os truques todos que me ensinaram e mais uns quantos que ouvi aqui e acolá. Nada. Espertina absoluta.
Acomodei-me no sofá armado do comando da televisão. Fiz força para pensar nela, lembrar-me dela, de todos os pormenores reais e os dos sonhos. Mas a verdade é que parecía que me tinham passado uma borracha nas minhas lembranças, uma lavagem ao cérebro. Acho que a insanidade aos poucos está a tomar conta de mim...
Recordei mais umas quantas coisas disparatadas do contexto, contei os losangos do tapete, visualizei os números fixos com que jogo no Euromilhões e de repente, ela!
Levanto-me de um salto do sofá, dirigo-me a ela, abraço-a, beijo-a, dou-lhe uma mordidela suave no pescoço. Ela nunca fala, nunca emite um som sequer, apenas os olhos negros a devassarem-me, uma profundidade que dispensa tudo o mais.
Aventuro-me, baixo-lhe as alças do vestido, sei que o peito dela está próximo das minhas mãos, tudo está ali ao meu alcance mas por uma razão qualquer que não entendo, desespero, desespero até desistir.
É que nunca lhe consigo ver o corpo nú!
Acordo com uma dor enorme no pescoço, gelado, o comando na mão.

5 de novembro de 2008

Ainda ela

Deitei-me tranquilo. Pode-se dizer, sem nada na cabeça.
Creio não ter demorado a adormecer.
Ela voltou. Outra vez aqueles olhos a fitarem-me.
Disse-me um Olá apenas a mexer os lábios sem som.
Desta vez deixei-me de vergonhas e encaro-a, quero que ela perceba que me intriga, que me envolve.
Sinto-a girar à minha volta, lentamente, um movimento de rotação que me obriga a ir virando à procura dos olhos dela, ela sempre com aqule Olá mudo que parece que ainda me excita mais, é um convite, é isso! Um convite para ir até ela!
Acordo fora da cama. Um valente trambolhão!
Sinto-me entorpecido. Aborrecido por ter acordado nesta hora tão despropositada, logo agora...
Olho o relógio, só passaram 20m desde que me recolhi.
Volto a deitar-me.
Mas o sono não chega, viro-me e viro-me e destapo-me e tenho frio e o diabo a sete!
Levanto-me.
Passo a noite no sofá a fazer zapping e a vê-la no ecrã.
Amanhã acabo com isto! Regresso à exposição e pronto!

4 de novembro de 2008

Platonico

Há dias fui a uma exposição de pintura e vi um óleo que era um auto-retrato da sua autora.
Fiquei bastante tempo parado, à distância, a olhá-lo. Prendía-me, nem sei bem explicar porquê, não era bela dessas belezas femininas louras e rosadas, mas de uma tez morena, traços marcados, a boca perfeitamente definida e os olhos... Pois esses é que me atraíam sobremaneira, a arcada supraciliar cheia de personalidade, o afilado do nariz, os cabelos escuros como uma moldura.
Senti-me hipnotizado, enfeitiçado.
Mas parecía que só comigo é que aquilo mexia, ao meu redor nem paravam, seguíam caminho de pescoço torto por alguns segundos e nada mais.
Estava eu nesta admiração quando ouvi uma voz por detrás de mim.
Virei-me.
E qual não foi a minha supresa quando reconheci ali, em três dimensões, a pintora. Senti-me um pouco embaraçado, a mulher tinha uns olhos negros, profundos e parecíam falar mais do que a boca.
Retribuí-lhe um Olá gaguejado (que papelão o meu...) e ela afastou-se devagar, os braços cruzados junto ao peito, dirigindo-se da mesma forma a um casal que observava outro quadro adiante.
Não sei explicar porquê mas senti ciúme. Quería-me único naquela fala, naquele aproximar, como se ela mesmo me desvendasse a razão da minha fixação no seu auto-retrato.
Isto passou.
Pois esta noite sonhei com ela. Repetimos as cenas. Mas ela não se afastou. Abraçou-me. Beijou-me sorvendo a minha boca, depois um lábio de cada vez, as comissuras, o queixo, segurou-me o rosto e eu sentía as mãos dela no meu pescoço mas de uma tal forma que fazíamos amor assim.
Foi uma cena erótica do mais belo que sonhei até hoje.
Acordei. Não consegui voltar a pegar no sono. Parece que ainda a sinto a beijar-me, a abraçar-me, a envolver-me junto ao pescoço... sinto-lhe amor, não sei explicar.
Penso nela. Muito, tanto.
E é sempre belo.

3 de novembro de 2008

Mensagens

Branco como a neve. Tudo branco. Sem árvores, sem casas, sem gente, uma imensidão de branco que se alteia em pequenos montes e desce em linhas suves em vales brancos.
A única cor no meio daquele branco luminoso sou eu. A minha pele, os meus sapatos, a minha camisa de quadrados, contrastam garridamente sobre toda esta mancha.
Caminho, deixo pegadas brancas.
E de repente reparo que as minhas próprias pegadas se adiantam a mim, conduzem-me, assinalam um caminho que sigo sem qualquer hesitação.
Sinto paz. Um silêncio absoluto, calmo que se entranha.
Chego a uma casa branca. Tudo é branco lá dentro, não há porta, faço-me convidado.
E encontro gente, tanta gente que já morreu.
Abraço-os, choro.
Mas eles estão felizes, tranquilos, aquietam-me, celebram a minha visita.
Não há muito diálogo, é mais os olhares, o sentir as mãos deles, mornas, sempre mornas e macias, os abraços tão apertados...
Acordo.
Recordo o rosto de cada um deles, sinto saudades. Mas sorrio.
Onde quer que estejam, sinto dentro de mim, que este foi um recado.

2 de novembro de 2008

En(Cantar)-Versão 2

Sala cheia.
Mesas pequenas redondas, toalhas de veludo pesado da cor do vinho. Média luz. Fumo. Mulheres ofuscam com as jóias em pescoços altos e esguios, vestidos de soirée. Os homens estão de fato preto.
Eu também. E de laço de seda negra, brilhantina, rubi no dedo mindinho.
Aparece o mestre de cerimónias e anuncia a próxima estrela.
Sou eu.
A sala levanta-se dirigida a mim numa ovação que dura por vários segundos. Algumas mulheres beijam-me o rosto, deixam-me marcas de baton vermelhissimo.
Incitam-me a subir até ao palco.
Levanto-me.
E reparo que estou de fato e de calças de pijama.
Fico aflito, quero fugir dali, mas as palmas continuam cada vez mais estaladas, mais ruidosas.
Grito.
Desperto com o meu próprio berro, assustadissimo.
Salto da cama e não me deito mais com medo de adormecer e voltar àquela sala.

1 de novembro de 2008

Acquosa

Mergulho.
Profundamente. Não há ar que me falte. Ondulo dentro de água sem necessidade do uso dos braços, das pernas, dos pés.
Tenho uma sensação de paz dentro de mim, parece que sempre vivi neste meio, sem resistência, sem dor, sem som.
Prossigo ora rente à areia ora vindo à superficie, e quando chego cá acima, quase cego por um sol esplenderoso. Parece que sei qual o rumo que devo tomar, tenho uma direcção certa, um objectivo, rasgo as águas a uma velocidade incrível, pequenas bolhas ficam para trás como um rasto da minha passagem.
De repente páro. Vejo uma mulher, nua, os cabelos louros são enormes, maiores do que o seu próprio tamanho, é bela. Penso para mim que terá cauda de peixe... mas não, duas pernas compridas e esguias, perfeita.
Sigo-a.
Ela deixa que eu a alcance, os cabelos sempre a ondularem ao sabor das marés, sorri-me, abraça-me, sinto o seu corpo junto ao meu. Não é frio, é morno, dum morno que não apetece largar. Beija-me. Continuadamente. Penso nesse instante que vou engolir água. Mas não. Retribuo-lhe os beijos.
Ela segura-me na mão e arrasta-me.
Não consigo ver o caminho por onde me leva, os cabelos longos tiram-me toda a visão.
Sinto-me feliz. Dentro do peito.
Nadamos por muito tempo.
Depois, num repente, sobe a pique, eu de reboque.
Olho para cima.
Estou preso num poço e a mulher desapareceu.
Acordo. Respiro apressado.
Todo molhado. Como os meninos pequeninos. Que sensação desagradável...