19 de novembro de 2008

Ela outra vez

Tive um dia de torrar! Cheguei a casa completamente roto, sem fome, só a pensar em cama e dormir, descansar, descansar e descansar.
Atirei-me para cima do sofá e num acto vicioso liguei a televisão: novelas, muito do mesmo em todos os canais, zapping, uma pepineira em todos.
Descalçei-me e fiquei por ali naquela moleza do nada.
O meu chefe chegou e desatou a pedir-me um monte de coisas, tudo ao mesmo tempo e tudo urgente. Perante a minha incredulidade de o ver na minha sala e no meu sofá ergui-me de um salto e impus a minha qualidade de proprietário da casa ordenando que se retirasse. Ele desatou a rir e num instante ficou sério.
Atirou-me um monte de papelada à cara, marcou um prazo e disse que era para ser feito tudo à mão. À mão?! Mas o quê? Eu não sabía o que era para fazer e ainda por cima à mão... aquela pergunta não me saía da boca e era ele a mandar e eu a perguntar, dois surdos que não se ouvíam.
Entrou a minha vizinha acompanhada do marido. Contei-lhes o que se passava, a injustiça que estava a ser cometida comigo, um rosário de queixas. Desataram a fazer cuorum com o meu chefe e por mais que eu me defendesse nada adiantava.
Duas outras colegas apareceram e juntaram-se ao grupo acusatório.
Já havía muita gente na minha sala, o meu sofá ocupado por estranhos que secundavam as ordens do chefe.
Tapei os ouvidos, neguei-me a ouvir.
Ela entrou. A mulher do retrato. Todos se calaram.
Ela agarrou no monte de papéis espalhados e beijou o centro de cada folha branca. O desenho da sua boca com todos os pormenores e da cor da romã ficou desenhado como se tivesse nascido da própria folha.
Eu estava maravilhado. Orgulhoso da sua bravura em enfrentar todos por mim. Afinal ela gostava de mim e isso deixava-me tão feliz e tranquilo...
A última folha foi a que saíu mais perfeita, parecía uma boca viva, os lábios a mexerem-se.
Estendeu-ma.
Eu comi-a. Soube-me bem. Parecía que assim guardava aquela mulher do retrato para toda a eternidade dentro de mim.
Acordei com um grito. Na televisão um filme do Drácula, a preto e branco.
Senti um arrepio de frio, olhei as horas, meia-noite e trinta e dois.
Como o tempo passara.
Despi-me e enfiei-me na cama. Não me incomodou que provavelmente não conseguría voltar a adormecer.
Já tinha valido a pena.

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