23 de outubro de 2008

Amputado

Da discussão acesa que mantenho só eu grito, do outro lado há respostas calmas e em tom baixo.
Não sei porque não encaro a pessoa com quem me zango, olho-lhe os pés, vejo-lhe uns ténis pretos sujos e velhos, a orla das bainhas das calças rasgada, poeirenta.
Debato-me sempre e muio por manter a minha opinião e acuso sistematicamente o outro sem o olhar nos olhos.
Por vezes falta-me a voz, quando tento gritar ainda mais alto.
De repente há um silêncio profundo, não recebo resposta do outro lado.
É aí que acho coragem para olhar omeu interlocutor que se aproximou mais de mim.
Não tem um braço, farrapos de carne pendem ainda à mistura com sangue e ossos fracturados, um quase coto sem cicatrização.
Grito horrorizado.
Reconheço-lhe o amigo de infância a quem perdi o rasto há muitos anos.
Desperto a choramingar, a gemer, estou aflito, demoro para me enquadrar na realidade. Penso em telefonar ao meu amigo no dia seguinte, procurá-lo, saber dele.
E temo que algum mal lhe tenha acontecido ou até mesmo que me apareça amputado.

1 comentário:

Alexandra disse...

Por vezes, a imagem que se nos apresenta não está relacionada com a outra pessoa (o seu amigo), mas connosco próprios, como se nos vissemos em espelho...normalmente algo que possa já ter acontecido ou, o medo que possa vir a acontecer.

Lembre-se sempre da simbologia... pq o que parece não o é!